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‘Txai’, de Milton Nascimento: um sopro de vida em meio ao ódio

Em mil novecentos e noventa, Milton Nascimento lançava Txai, projeto que além de ser o vigésimo quinto álbum de sua carreira, nasceu a partir de uma expedição à floresta amazônica e fez parte de uma campanha mundial de apoio à Aliança dos Povos da Floresta, coordenada pela União das Nações Indígenas e pelo Conselho Nacional dos Seringueiros.
 

Txai é um termo da língua dos índios Kaxinawá que, em uma tradução literal, significa “mais que amigo/ mais que irmão, a metade de mim que existe em você/ e a metade de você que habita em mim.” Segundo Márcio Ferreira, produtor do álbum, a palavra é “adotada por índios, seringueiros e ribeirinhos, no Acre, como tratamento de respeito e carinho a todos os aliados dos povos da floresta. Companheiro; uma metade de mim”. Para as mulheres, é usada outra palavra, parecida, algo como txai-ta.

 

Na obra, Milton Nascimento nos entrega quinze faixas que se amarram e dão um tom conceitual ao álbum. E o faz de forma exemplar. Txai é construído em diálogos e não apropriações. Nascimento compõe e canta a partir da influência que a experiência de navegar por dezessete dias pelas águas do Alto do Juruá e do rio Amônea, no Acre, teve sobre si. E quando não o faz, prefere sair de cena para que vozes autóctones sejam as responsáveis pela sua própria cultura. E é justamente essa confluência que faz de Txai algo único.

 

Milton Nascimento

Milton Nascimento com Benki na comunidade Ashaninka no Rio Amônea, Alto Juruá, Acre em 1989. Fotografia de Beto Ricardo.

 

Logo na abertura do álbum, temos a faixa experimental Overture, na qual Davi Kopenawa profere um texto na língua de seu povo, os Yanomamis, enquanto Milton Nascimento canta ao fundo o tema composto para o Ballet David Parsons, criando assim uma base melódica para o líder indígena. A segunda inserção protagonizada pelos povos originários desta terra que se convencionou a chamar-se Brasil acontece na canção Baú Meteoro, pertencente ao povo Kayapó do A-Ukre e interpretada pelo próprio povo da aldeia, e que mais tarde retornam com a música Baridjumokô, encerrando o disco. Hoeiepereiga, música original do povo Paiter e interpretada pelo Pajé Perpera e os participantes da cerimônia do Hoeiete é outra composição indígena a aparecer em Txai. Também estão presentes no álbum Awasi, música original do povo Waiãpi, interpretada pelo povo na aldeia Amapari e a faixa Curi Curi, uma interpretação livre feita pelo índio Tsaqu Waiãpi e que também conta com a participação do falecido ator estadunidense River Phoenix.

Com arranjos belíssimos e interpretações primorosas — tanto dos músicos quanto do próprio Milton — as composições originais de Txaiconseguem, com as imagens e sensações evocadas por elas, levar o ouvinte a uma experiência de paz. Tudo isso, claro, com o auxílio da poesia presente em cada canção. A faixa título, por exemplo, que é praticamente uma tradução musicada do termo caxinauá, traz trechos como “Já vai, ia levando o meu amor/ para molhar teus olhos/ se fazer tudo bem/ te desejar como o vento/ porque a tarde cai” e “Txai, onde achei coragem/ de ser metade todo teu / outra metade eu/ porque a tarde cai/ e dona lua vai chegar/ com sua noite longa/ ser para sempre txai”; a música Coisas da Vida, que fez parte da trilha sonora da novela Rainha da Sucata, é dona de versos como “O amor enfim/ ficou senhor de mim/ e eu fiquei assim/ calado, sem latim” e “Ser o senhor e ser a presa/ é um mistério, a maior beleza/ amor é dom da natureza/ amar é laço que não escraviza”. Porém, é em A Terceira Margem do Rio, composição de Milton Nascimento e Caetano Veloso, inspirada pelo conto homônimo de João Guimarães Rosa, que encontramos o maior tesouro do disco.

 

A terceira margem do rio, o conto, é uma das obras-primas da literatura brasileira. Presente no livro Primeiras estórias, narra a história de um pai que, sem mais nem menos, e sem explicação alguma, deixa a sua família para trás e se isola por toda a vida adiante em uma canoa em meio a um rio, sem nunca mais pôr os pés em terra firme, sem nunca mais dizer palavra outra. Os que ficaram, lidaram cada um à sua maneira com a escolha do homem que passou a viver, fizesse chuva ou sol, o tempo que fosse, sempre longe das margens. Um conto enigmático que não se propõe a dar respostas.

 

            

 

A Terceira Margem do Rio, a música, é grandiosa. Com arranjo e execução musicais intrincados, ela consegue proporcionar a sensação de mistério e deleite, tal qual o texto de Rosa. Além da onipotência de Milton, muito disso vem da orquestração de Wagner Tiso. Os metais, instrumentos de corda e de sopro criam o clima que a composição precisa. E o coro, regido por Novelli, se mostra poderoso e necessário em momentos chaves da música. Entretanto, os grandes destaques são o baixista João Baptista e o baterista Robertinho Silva, que com suas performances impecáveis, criam uma cozinha que sustenta todo o resto, ditando o ritmo, a cadência e a dinâmica de todo o instrumental. A letra da música — que fora composta por Milton — fora escrita por Caetano Veloso. Este diz que a sua tarefa foi fácil, que fora apenas um artesão, um funcionário, pois Nascimento havia lhe enviado a música já com o título e, nas suas palavras, “com esse elenco que vem de Minas Gerais, é fogo. Milton Nascimento e Guimarães Rosa chega lá em casa, bate na porta os dois juntos só para eu ajeitar o negócio, é sopa. Com açúcar, até eu”. Em A Terceira Margem do Rio, por entre seus momentos de intensidade e calmaria, encontra-se esse outro lugar de afeto, permanente, a terceira margem da canção, onde o gozo é perene e que ninguém jamais olvida.

 

            

 

Não bastasse todo o seu valor artístico e cultural, Txai, que completa trinta anos em dois mil e vinte, também é precioso por nos lembrar qual é a relação que o país deveria ter com os povos originários de sua terra. O respeito, a admiração e a reverência que estão presentes no álbum, assim como em tudo em torno dele, infelizmente são cada vez mais distantes da nossa realidade. Segundo um artigo publicado pela Agência Brasil em vinte e cinco de junho de dois mil e vinte, um terço das etnias indígenas foram atingidas pela pandemia de covid-19. De acordo com o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, isso equivale a cento e onze dos trezentos e cinco povos indígenas que vivem no país; em vinte e sete de junho de dois mil e vinte, o G1 publicou uma matéria na qual diz que bebês Yanomamis foram enterrados sem autorização de suas famílias. As crianças foram retiradas da Terra Yanomami para fazerem outros tratamentos, mas foram infectadas pelo novo coronavírus nas unidades de saúde. Para piorar a situação, os Yanomamis possuem um ritual próprio para o enterro. As mães, desesperadas, já enfrentam esse sofrimento há um mês. Entretanto, esse descaso com os povos originários não é de hoje. Tampouco algo ocasionado pelo momento delicado pelo qual estamos passando. Só no Governo Bolsonaro, que está apenas em seu segundo ano, os indígenas enfrentam diversos problemas, como por exemplo, o aumento do número de assassinatos, que só no primeiro ano do governo bolsonarista, bateu recorde, registrando o seu maior número em onze anos. E esses são apenas alguns exemplos dos desafios que os povos da floresta precisam lidar para sobreviverem. O Brasil, que é dono de uma dívida histórica com o povo indígena, segue fazendo muito pouco para assegurar a sua existência. Denúncias não faltam.

 

           

 

Txai é um pouco de ar puro em meio a tanta poluição. E embora a obra não tenha o poder de resolver as mazelas cujas quais os povos indígenas estão sujeitos — e essa nem é a sua intenção –, ela nos traz a beleza que circunda os originários da terra, seja direta ou indiretamente. Beleza essa que deveria ser mais celebrada e conhecida; que deveria estar mais presente em nosso dia a dia em vez das tristes notas que porventura surgem por aí. E isso, por si só, nos permite refletir sobre a realidade indígena de nosso país. Txai é a prova de que o diálogo, o respeito e as trocas entre povos possibilitam um outro caminho, diferente do qual o homem branco optou e que só leva à destruição. Todavia, faz-se necessário dizer que, por melhor aliado que seja, Milton Nascimento, esse orixá que tivemos a honra de encontrar neste plano, como diria Emicida, não é a única via possível para que possamos ouvir as vozes dos povos da floresta. O máximo que ele faz é amplificá-las. Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Raoni Metuktire e Sônia Guajajara são alguns líderes indígenas que jamais deixaram de falar pelos seus povos; Daniel Munduruku, Eliane Potiguara e Márcia Wayna Kambeba são alguns escritores que enfrentam o véu da invisibilidade que tenta cobrir a literatura indígena; e na música, Souto MC e Kunumí MC são dois dos novos nomes que buscam fazer com que a suas ancestralidades sejam ouvidas. Ainda assim, isso é muito pouco ou quase nada. Nomes como esses deveriam estar na ponta da língua de todo brasileiro. Mas para que isso seja possível, a cultura indígena deve ser preservada, assim como as suas terras protegidas e suas vidas asseguradas pelo Estado. Enquanto este dia não chega, devemos buscar maneiras de nos tornarmos também aliados nessa luta que está custando demais a findar e, com isso, contribuir para que o mais breve possível, o único motivo de nossas alianças seja o de fazer nascer outros trabalhos como o Txai, que segue sendo um sopro de vida em meio a tanto ódio.

                                   

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17 Comentários

  • Responder
    Gabriela Harrison
    12 julho, 2020 em 19:44

    Amo tanto o Milton e tudo que leio/acompanho sobre ele só aumenta esse amor.

  • Responder
    Giulliana Karla
    12 julho, 2020 em 20:16

    Milton é conhecimento, é um sentimento inexplicável, é vida. Fico profundamente triste que muitas pessoas ignorem o valor dos povos originários, o que está acontecendo neste atual (des)governo é uma chacina a céu aberto! Me entristece perceber que em alguns aspectos estejamos retrocedendo… ainda bem que Milton existe e fortalece nossas almas para que sigamos na luta!

  • Responder
    Maria Eduarda Ferreira
    13 julho, 2020 em 13:10

    Que conteúdo maravilhoso! me aproximou muito do Milton Nascimento que já amo tanto. essas composições são incríveis demais! ao mesmo tempo que único, que lindo de faz também tão presente e necessário devido o atual cenário de descaso com povos originários no Brasil..

  • Responder
    Amanda Caroline da Silva
    14 julho, 2020 em 00:06

    Peguei essa indicação e fui ouvir antes de comentar, como sempre Milton com muito sentimento entregou nada menos que a perfeição! Ótima indicação, aliás, necessária!

  • Responder
    Keila
    14 julho, 2020 em 02:18

    Esse texto foi um presente! Eu amei todas as referências literárias e musicais e,principalmente, o tema de que o texto trata. O caso das mães Yanomami eu acompanhei pelas redes sociais e, como na música do Kunumí MC,o mundo permanece em silêncio,mesmo em face de tantas barbaridades. O disco de Milton é ainda mais importante nesse momento,bem como a literatura indígena e sua cultura valorosa.

  • Responder
    Alana Moura
    14 julho, 2020 em 23:57

    Milton Nascimento o que falar? Nada que eu escreve será um elogio que alcance a grandiosidade desse artista incrível!! Não sabia sobre o significado da palavra que dá nome ao album, que lindo, delicado e especial. Milton é um cantor de referências suas canções são como um diário, falam sobre suas vivências. Maria, seu texto como sempre impecável.

  • Responder
    Barbara Grangeiro Leal
    16 julho, 2020 em 19:23

    Que indicações maravilhosas!!! Não só do álbum do Milton mas de todas as lideranças indígenas.

  • Responder
    Raquel Gusmão
    16 julho, 2020 em 23:24

    Milton é incrível,não conhecia esse álbum dele mas amei essa e outras indicações do post!

  • Responder
    Érika Santana
    17 julho, 2020 em 09:38

    Amos seus textos, Arman. Sempre tão profundos e detalhados.. Daí junta isso com Milton!
    Coração chega a derreter… Milton é calmante no meio desse caos!
    Muito obrigada ❤️

  • Responder
    Ana Luisa
    21 julho, 2020 em 21:41

    Que post maravilhoso! Indicações ótimas e assuntos muito importantes! Muitíssimo obrigada!!! 😀 😀 😀

  • Responder
    Jaíne Muniz
    22 julho, 2020 em 16:51

    Milton é vida e som puramente brasileiro! Que coisa linda, obrigada por compartilhar e enriquecer esse álbum com tantas palavras necessárias.

  • Responder
    Mateus Alves
    22 julho, 2020 em 18:25

    Milton é incrível! É revigorante ver as pontes que ele construiu através de sua arte.

  • Responder
    Beatriz Cerqueira Biscarde
    27 julho, 2020 em 02:17

    Que post incrível!

  • Responder
    Ana I. J. Mercury
    31 julho, 2020 em 02:53

    Uaaau, que álbum mais cultural e bem produzido!
    Isso sim é que a arte pura!
    Olha, conheço poucas músicas do Milton, mas agora quero ouvir o álbum completinho!
    Obrigada pela dica!
    bjs

  • Responder
    luisadeholanda
    31 julho, 2020 em 03:28

    Eu li esse conto do Guimarães Rosa quando era adolescente, é incrível. E Milton é um artista espetacular, realmente é um presente dividir o mesmo espaço-tempo com ele.

  • Responder
    ISADORA LOPES
    1 agosto, 2020 em 02:37

    Milton é um artista brilhante, esse trabalho faz jus à sua grandiosidade. E seu texto sempre impecável Maria, complementou muito bem a arte de Milton.

  • Responder
    Milton Nascimento – Txai (23/04/91) – MINHAS AUDIÇÕES 🇧🇷
    3 novembro, 2023 em 07:56

    […] Impressoes de Maria […]

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