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Literatura

O jogo alegórico antifascista de Hesse em O Jogo das Contas de Vidro

Publicado originalmente em 1943, O Jogo das Contas de Vidro é escrito de forma verborrágica. Somos avisados pelo narrador que Servo foi uma criança prodígio; um adulto dotado de uma inteligência descomunal; e já como Magister, foi o melhor que já existiu, porém em nenhum momento das quinhentas páginas somos apresentados a nenhuma de suas proezas. Goethe, Nietzsche e Bach também são citados porque aparentemente o narrador também precisa deixar claro que ele também é um intelectual. O romance pode ser entendido como uma extensa faux biografia de José Servo, que sem pai e mãe, é iniciado em uma espécie de monastério, com o intuito de estudar e tornar-se, então, Magister Ludi (mestre do jogo).

Hesse cria aqui uma história complexa e maçante por cerca de noventa por cento de seu conteúdo, visto que nada realmente acontece. Alguns diálogos entre dois personagens chegam a durar mais de dez páginas, e a jornada de José Servo também é escrita com tons estranhos de uma fantasia utópica, uma vez que a história começa em 2200 e embora não seja uma ficção científica per se, há um estranhamento engraçado até certo ponto, pois o tom de sátira, às vezes zombeteiro é voltado para várias vítimas: intelectuais reclusos e blasés que se acham melhores que os menos letrados, se são escritores, ou a vida dos padres.

Foto de Gret Widmann.

O jogo que dá nome ao livro é chamado de Avelórios, e consiste em uma complicadíssima mistura intelectual que abrange música clássica, matemática, ciência, literatura e química, mas que nunca é explicado de fato. Somos obrigados a simplesmente acreditar que o tal jogo é realmente importante naquele país, visto que a escola, as festividades, e todo o gasto anual daquele local é pago com dinheiro público (o que causa o abandono de Servo após uma década atuando como Magister). Servo é um menino prodígio, e com potencial para tornar-se, quando adulto, o grande mestre. Hesse não economiza nos detalhes da formação do seu protagonista, que nos é apresentado com cerca de doze anos, e que terá seu fim trágico perto de completar os sessenta. Presenciamos seus estudos, suas amizades, seus traumas, suas dúvidas acerca do futuro recluso (quem é aceito na escola precisa desistir da vida mundana viver como celibata pelo resto da vida). Em certos momentos fica evidente uma certa apropriação cultural, visto que alguns personagens brancos são obcecados pela cultura chinesa, chegando inclusive a copiar o estilo de vida dos grandes pensadores chineses, seu modo de se vestir e toda a sua filosofia, etc.

Dois detalhes saltam imediatamente aos olhos em várias partes do romance, e por consequência, na vida do protagonista: uma homossexualidade — não tão assim — nas entrelinhas entre Servo e Plínio, um de seus amigos de escola, que de família rica e conservadora é enviado ao local contra a vontade, e que desde a adolescência é entendido por todos ali como um intruso, já que mesmo inteligente e digno daquele ambiente, é considerado mundano e pecador. Plínio é talvez a razão das dúvidas de Servo, já que ao tornar-se, aos quarenta anos o mais jovem mestre dos jogos, acaba sentindo-se fatigado com todos os deveres acumulados após uma década da sua nomeação, chegando, inclusive, a viver na casa do amigo, e trabalhando como professor particular de seu filho (que vê o pai como um fracassado, visto que não conseguiu seguir carreira na mesma escola que Servo). É curioso, aliás, o fato de Servo ter aceitado o emprego como professor de um jovem adolescente, já que ele, desde o começo de sua nomeação como Magister Ludi, deixa claro, e inúmeras vezes durante sua fase adulta, sua vontade de ter turmas de alunos cada vez mais novos; e aqui fica impossível não entender essa fixação do protagonista com meninos como uma crítica à igreja católica e seus inúmeros casos de pedofilia.

O romance sofre com um anticlímax (na verdade, acho que o livro todo é um enorme anticlímax), uma vez que a história do protagonista termina de forma abrupta e trágica justamente quando ele consegue se livrar do peso de ser o Magister Ludi. Obviamente isso não se trata exatamente de algo negativo, já que várias obras usam esse tipo de fórmula, mas o problema aqui é que o capítulo em que Servo consegue finalmente tornar-se Magister é um dos mais maçantes do livro; e sua função como tal não é justificada de nenhuma forma para que a jornada de abstinência que o protagonista precisa enfrentar por quarenta anos faça sentido. Ademais, o final tráfico (poético, é preciso afirmar) acontece quase cento e vinte páginas antes do final do livro. Portanto, precisamos passar ainda mais tempo lendo suas obras póstumas fictícias que fazem parte da bibliografia também fictícia de um personagem fictício não tão interessante a ponto de sua história se alongar por mais de quinhentas páginas.

O Jogo das Contas de Vidro é um livro de altos e baixos, visto que as partes boas não são só boas, e chegam mesmo a ser realmente excelentes, porém são praticamente escassas; as partes verborrágicas e enfadonhas, por outro lado, são intermináveis, e nossa frustração só aumenta pois a cada cinquenta páginas lidas, ficamos na eterna expectativa: será que agora acontecerá algo interessante?
Spoiler: não.
* Exemplar recebido em parceria com a editora.

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2 Comentários

  • Responder
    LETICIA NASCIMENTO DE SOUZA
    27 março, 2021 em 22:44

    Ué cadê a parte pertinente ao título? a que se refere o antifacismo prometido no título? Ademais, muitas imprecisões sobre o enredo. Abçs!

  • Responder
    Therezinha Haddad
    1 maio, 2022 em 18:38

    Agradeço seus comentários, que me libertaram da dúvida de abandonar a leitura ou insistir pra ver se fica melhor. Há dois dias comecei a ler “O jogo das contas de vidro” e não estava conseguindo ir adiante, pois é realmente enfadonho. Acabo de desistir, com sua ajuda.
    Já “O lobo da estepe” é muito bom!

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