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A memória materna em “A mulher dos pés descalços”, de Scholastique Mukasonga

“Mãezinha, eu não estava lá para cobrir seu corpo e tenho apenas palavras — palavras de uma língua que você não entendia — para realizar aquilo que você me pediu”

A violência em Ruanda, que culminou no genocídio praticado pelos Hutus em 1994, serve como plano de fundo deste romance em forma de memórias escrito por Scholastique Mukasonga. Originalmente escrito em francês em 2008, A mulher dos pés descalços, publicado no Brasil pela Editora Nós, com tradução para o português por Marília Garcia, é uma poderosa homenagem da autora à sua família, especialmente à sua mãe Stefania, uma mulher que vivia em função da segurança dos filhos porque ela se transformava em uma quase general, visto que para proteger seus filhos do exército Hutu, precisava adotar táticas de sobrevivência idênticas às praticadas pelo inimigo. Stefania estava sempre alerta, quase nunca dormia, conhecia e fazia caminhos e esconderijos camuflados com galhos de árvores que estavam longe do alcance do exército. Com isso, seus filhos, evidentemente, precisavam também estar sempre atentos no caso de um ataque surpresa. Uma muda de roupa e alimentos eram escondidos em cada um desses esconderijos.

Os detalhes acerca de de assassinatos, estupros e outros crimes terríveis são escritos de forma gráfica, afinal estamos lendo sobre uma mulher que foi assassinada juntamente com outras 800 mil pessoas em menos de 100 dias —  o momento em que a autora relembra o chão de uma igreja repleto de ossadas de homens, mulheres e crianças é particularmente devastador —. O livro é repleto de memórias compostas por um detalhismo marcante. A autora estabelece o rumo violento da narração já nas primeiras páginas ao falar sobre o assassinato da mãe, e em seguida, ao descrever quão aleatório eram os ataques sofridos por eles pelo exército, que chegavam derrubando portas, destruindo as casas, chutando idosos e crianças; e ao final, passavam à casa do vizinho, criando assim uma corrente de terror aos que acabaram de sofrer e ao vizinho, que até então estava escutando os gritos de pavor da família vizinha.

Entretanto não é apenas a dor que ganha destaque nas palavras de Mukasonga. Se o detalhismo usado pela autora para denunciar a violência sofrida por seus familiares pode causar gatilhos em certos leitores, esse mesmo detalhismo também é usado em abundância  quando ela direciona sua atenção à cultura e aos costumes de sua vila. A autora é extremamente generosa quando descreve todo o processo de construção dos Inzus onde as famílias viviam. Aliás, ouso arriscar talvez que o livro tenha mais momentos doces, descontraídos e poéticos do que a violência descrita nas primeiras páginas. Em certo momento, por exemplo, ao escrever sobre o padrão de beleza buscado pelas mulheres da vila, e de como se descobrir bonita sem um espelho, a autora escreve: “Nosso rosto nunca era nosso quando como é visto no espelho, ele era sempre de outro” (p. 91).

A chegada de produtos estranhos aos olhos dos moradores, sejam eles em objetos para cozinha, beleza, ou até mesmo o vaso sanitário são relembrados pela autora com humor. Os mais jovens geralmente eram mais abertos à experimentação desses objetos trazidos pelo homem branco, já os mais velhos enxergavam aquilo como uma morte inerente e não como progresso. Toda aquela excitação dos jovens eram para eles o começo de um lento, mas certo, plano de invasão do branco europeu, portanto é sintomático que o homem branco tenha se transformado literalmente no bicho papão (evidentemente trajando shorts cáqui, meias até os joelhos, chapéu colonial e um chicote) quando as mães precisavam assustar os filhos que se comportavam mal.

Em última análise, A mulher dos pés descalços é um livro importantíssimo para podermos conhecer e entender, ainda que partindo do ponto de vista de uma única mulher, os costumes e os detalhes da vida de um povo que vivia tranquilamente ao seu modo, com sua religião, com seus remédios naturais, com seus rituais. Tudo isso claro, antes do envenenamento causado pelo homem branco.


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