0
Cinema Mulher negra

Estados Unidos vs. Billie Holiday: estrela do Jazz ganha cinebiografia fraca

Dirigido por Lee Daniels (Preciosa: Uma História de Esperança), Os Estados Unidos vs Billie Holiday narra a carreira de Billie Holiday (Andra Day, de Marshall: Igualdade e Justiça) por cerca dos 20 anos em que ela foi perseguida pelo Departamento Federal de Narcóticos, bem como sua luta contra a heroína, a discriminação racial sofrida pelos negros, e por último, mas não menos importante, seu conturbado relacionamento com Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes, de Moonlight), o oficial negro contratado pra espioná-la na operação.

Após assistir à primeira adaptação cinematográfica sobre a vida de Holiday (O Ocaso de uma Estrela, 1972), Lee Daniels decidiu retratá-la também como uma defensora pelos direitos civis e não apenas como uma cantora viciada em heroína, portanto é sintomático que o filme tenha início com a impactante fotografia “O linchamento de of Thomas Shipp e Abram Smith”. Strange Fruit, talvez a música mais famosa de Holiday, é um grito de socorro, uma denúncia contra os enforcamentos de pessoas negras tão comuns naquela época, considerada como o início do Movimento dos Direitos Civis. Strange Fruit é, aliás, um dos motivos alegados pelas autoridades para a perseguição sofrida por Holiday. Segundo eles, a música é uma incitação à violência, quando na verdade, quem Holiday canta sobre a violência sofrida sistematicamente pelo povo negro americano.

Como não poderia deixar de ser, os personagens brancos são retratados como completos imbecis que não conseguem — ou não querem — entender a importância de uma música como Strange Fruit. Seu próprio empresário, aliás, tenta constantemente retirar a música do repertório porque a branquitude não se sente à vontade quando seus crimes são escancarados na canção mais requisitada de uma artista. Já a entrevistadora — uma senhora branca de cerca de 60 anos que comanda a entrevista que faz a narrativa girar — insiste em perguntar por que Holiday faz tanta questão de cantar uma música que só lhe traz problemas com a lei, escancarando a tão comum tática dos brancos de retirarem de si a responsabilidade, e as jogando nas costas de pessoas negras.

Abusada quando criança e também na vida adulta, Holiday é constantemente traída por seus amantes (que mais de uma vez, a mando da agência de narcóticos, tentaram incriminá-la, colocando drogas em seus bolsos). Em determinado momento, por exemplo, Holiday é espancada por seu namorado minutos antes de se apresentar em um show — e a cena em que ela tem suas costelas enfaixadas antes de subir ao palco é particularmente dolorosa, mas perde sua força porque aparentemente Daniels sentiu ser imprescindível mostrar os seios da atriz de forma gratuita —, apenas para na cena seguinte, ser mostrada sorridente em uma cama de hotel enquanto o namorado e questiona o porquê deles ainda não estarem casados.

A relação de Holiday com o sexo, aliás, demonstra toda a sua dificuldade em aceitar ser amada. Criada em um bordel desde criança, ela sofreu com a violência por toda a sua vida. E por constantemente ser tratada como um objeto pelos homens à sua volta, ela acaba absorvendo e naturalizando aquele tipo de relação. Portanto é sintomático, aliás, que ela já comece as relações sexuais retirando sua roupa e ficando em uma posição de submissão, de costas para o parceiro. E quando Jimmy sugere outro tipo de posição sexual, mais focada no carinho e na delicadeza, Holiday parece sequer saber da possibilidade de existir sexo que não é pautado pela violência e pela submissão. O lado queer da cantora, aliás é apenas sugerido através de sua “amizade” com a atriz Tallulah Bankhead, interpretada por Natasha Lyonne, de Boneca Russa.

Favorecido pela atuação de Andra Day (Indicada ao Oscar de melhor atriz) e seus gloriosos close-ups, bem como pelo excelente trabalho do figurinista Paolo Niedduo (em colaboração com Miuccia Prada) na recriação das roupas usadas por Holiday — notem, por exemplo, como Holiday usa luvas negras acima dos cotovelos para esconder as marcas deixadas pelas injeções de heroína. O filme tem seus poucos bons momentos apenas na trilha sonora e nas atuações de um elenco calibrado mas que sofre nas mãos de um diretor apenas mediano, que devido às desnecessárias cenas de nudez, nos entrega um filme que parece, na maioria do tempo, ser o resultado mal acabado de um episódio barato de seriado sensacionalista dos anos 90. Caso vença o prêmio, Andra Day fará parte do seleto grupo de atrizes que levaram a estatueta para casa em estreias na atuação. Entre elas Lupita Nyong’o (12 Anos de Escravidão), Jennifer Hudson (Dreamgirls), Anna Paquin (O Piano), Julie Andrews (Mary Poppins) e Mercedes McCambridge (A Grande Ilusão).

Billie Holiday faleceu aos 44 anos vítima de cirrose, algemada em seu leito de hospital, acusada de posse de drogas pelo Departamento Federal de Narcóticos. 

Em 1937 um projeto de lei para criminalizar os linchamentos foi considerado pelo senado americano.

O projeto não passou.

Em fevereiro de 2020 um projeto de lei contra linchamentos foi novamente proposto.

O projeto ainda não passou.


Você gosta do conteúdo criado pelo Impressões de Maria aqui no blog, no YoutubeInstagram e demais redes? Gostaria de apoiar este trabalho? Você pode fazer suas compras da Amazon usando o link do blog sem pagar nada a mais por isso, ou apoiar o projeto Leituras Decoloniais no Catarse. Obrigada!

Você poderá gostar

1 Comentário

Deixe um comentário

Os livros de Ayọ̀bámi Adébáyọ̀ Romances que abordam o tema da gentrificação Livros de estudos literários negros