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Literatura Literatura brasileira

“Insônia”, de Graciliano Ramos, e o racismo desenfreado

Poucas vezes, desde meus 12 anos de idade, quando abri pela primeira vez um livro da Série Vaga-Lume, até o último dia 14, quando iniciei Insônia, eu havia cogitado abandonar alguma leitura. Em Insônia foram 5 vezes.

Publicado em 1947, o livro contém 14 contos que parecem inacabados, como se escritos às pressas, além de ser repleto de frases, descrições e declarações racistas. Com exceção dos quatro primeiros contos nada se salva. O autor cria a falsa esperança de que estamos prestes a nos debruçar em um livro surrealista, sombrio e belo — algo quase kafkiano —, mas, infelizmente, o que acontece ao final da euforia inicial é uma ironia sem tamanho, se considerarmos o título do livro. Sono é nosso companheiro constante. 

A promessa é que teremos um livro protagonizado literalmente pela insônia, deliberadamente transformada através de várias roupagens: uma lembrança do passado; uma cirurgia em um hospital caindo aos pedaços; um assalto que teima em nunca terminar, pois o ladrão continua rememorando seu período escolar; ou até mesmo a lembrança de uma vida de negligências à esposa. De certa forma, os quatro primeiros contos funcionam relativamente bem — o exemplo perfeito está nas descrições anteriores, todas referentes a detalhes daqueles contos —, mas uma vez que acaba “Paulo”, o conto número quatro, o que nos resta é um livro com histórias desorganizadas, misóginas, racistas, homofóbicas e soníferas, em que vários personagens igualmente racistas insistem aparecer, um atrás do outro, sem rumo e sem finalidade. Sim, eu sei que pessoas racistas existiam e existem na literatura e na vida real. Também sei que determinados tipos de comentários e expressões hoje consideradas racistas eram, em épocas passadas, “faladas por todo mundo”, mas que de qualquer forma, não deixavam de ser racistas. Logo, não é porque um autor escrevia — ou pensava — como todos escreviam e pensavam que eu tenho que ignorar toda a problemática do texto.

Em determinado momento, por exemplo, um ladrão é preso por abusar sexualmente de uma mulher. O conto, é claro, termina de um jeito bem conhecido em nossa sociedade machista: culpando a vítima ao dizer que por causa dela ele teve a vida estragada. Adiante, em outro conto, um personagem assedia sexualmente uma cantora durante uma viagem de carro rumo à casa de um escritor decadente. Vale lembrar que todos os contos são narrados em primeira pessoa, então, quando um personagem é racista e homofóbico, eu faço um exercício de respiração e tento (apenas tento) colocar a obra no contexto da época de sua publicação, mas quando é o narrador que deliberadamente decide usar todos os tipos de expressões racistas para se referir aos personagens negros, me recuso a fechar os olhos. Muitas vezes as expressões racistas nem fazem parte da construção do personagem. Várias vezes eu reli as frases sem as expressões racistas para poder fazer um teste e cheguei à conclusão de que em nenhuma das vezes a trama se beneficiou do uso das expressões.

Em suma, me senti representado somente por um breve período de sentenças, quando em certo momento, um dos personagens começa a implorar aos céus para que sua ferida se agrave e o mate logo, e por incrível que pareça, esses eram meus pensamentos a cada conto terminado e a cada conto iniciado.

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4 Comentários

  • Responder
    Lorena Ribeiro
    22 maio, 2021 em 18:20

    Eu já não queria ler, depois de ver você comentar sobre o livro no Instagram, William. Agora, pior ainda. Nossa! Parece ser um livro insuportável. Parabéns por ter conseguido terminar a leitura, mesmo com toda sonolência e incentivos pra abandono. Rs.
    Sua escrita é muito gostosa de ler. Eu vou lendo, lendo… quando vejo, já acabou a resenha e eu tô sorrindo. Rs. Gosto das sacadas no último parágrafo ♥. Acaba que nos faz continuar refletindo sobre o que lemos, mesmo depois de fechar o blog (eu, por exemplo, ainda tô pensando n a possibilidade de um “roubo” do penúltimo capítulo dum livro de suspense).

    • Responder
      William Alves
      24 maio, 2021 em 09:23

      Você é muito gentil Lorena. Obrigado pela leitura!
      Olha, sinceramente, o que me chamou a atenção foi o conceito de ter a Insônia como protagonista, mas essa animação inicial se evaporou já nas primeiras 10 páginas. Foi um sufoco terminar a leitura.

      Boa semana!

  • Responder
    Luana
    14 outubro, 2021 em 11:45

    Olá! Eu estava lendo esse livro e comecei a me sentir tão incomodada com e esse racismo que cheguei a buscar a respeito e encontrei essa sua análise – concordo plenamente. Não tive a mesma força de vontade que você e larguei o livro após passar da metade. Fiquei contente em encontrar sua voz em comum 🙂

  • Responder
    Luiz Walter Furtado
    19 dezembro, 2021 em 13:35

    Willian Alves, bom dia. Acabo de ler “Insônia” de Graciliano Ramos e vejo as coisas um pouco diferentes. Penso que é um livro sobre a incomunicabilidade da palavra falada. Assim, na maioria dos contos as pessoas não conseguem se comunicar. As palavras não são entendidas e nem mesmo ouvidas, os personagens se fecham em seus mundos e a pouca comunicação se dá pela palavra escrita, como no conto “Silveira Pereira” em que o jovem estudante começa a escrever contos para poder conhecer um pouco mais do “hospede do quarto 9”, um homem silencioso e que provavelmente escreve.

    Assim: um ladrão no meio da noite, enfrenta a incomunicabilidade das pessoas dormindo; um moribundo houve apenas “o relógio do hospital” mas não consegue se comunicar com a família presente, cujas falas não entende bem; dois irmãos vivem na mesma casa mas não conseguem se comunicar, a ponto de a irmã denunciá-lo à polícia por não compreender os fundamentos dos artigos comunistas que ele escreve para um jornal. A compreensão dela se faz pelo outro lado, o lado fascista do integralismo entendido apenas por frases desconexas de outras pessoas. Em “Dois dedos”, “A testemunha”, “Ciúmes”, “Um pobre diabo”, “Uma visita” e “Silveira Pereira” a incomunicabilidade chega ao seu ponto mais alto, mostrando, esse último, que mesmo a palavra escrita, quando lida, torna-se inaudível e incompreensível levando os personagens à sonolência e ao devaneio interior.

    Então, penso nesse título “Insônia”. Será que o autor errou na escolha do título? Ou insônia representaria aqui um novo sentido: a ausência de sons e não a ausência de sono. É pensar nas possibilidades.

    Quanto ao machismo: Veja bem a ironia da situação do ladrão que culpa uma mulher dormindo na sua própria casa, na qual ele entra como ladrão. O Diretor da revista, em seus devaneios interiores encosta a perna na cantora de rádio e sente algum prazer com isso. Daí prolonga um pouco esse contato. Mas é uma coisa muito rápida, um devaneio. Não se esqueça de que você está na pele desse personagem e confessa a si próprio esse pequeno prazer que a outra nem notou. Provavelmente deve ser um cara sacana, mas não dá para falar em assédio apenas por esse conto. para mim não é assédio. Vejo mais ironia do que machismo nesses contos.

    Quanto ao racismo: aí penso que não há como discutir, os adjetivos são chulos e desnecessários. Mas mesmo assim há a certeza da condenação do negro acusado de “A testemunha”, por ser negro e pobre. Mais uma vez a palavra pouco vale, pois o negro já está condenado. Aí é saber se pode-se aproveitar o que é bom e apontar o racismo. O que será mais útil à causa negra?

    Um grande abraço.

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