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Cinema

Sem Remorso: Michael B. Jordan ganha filme solo genérico

Direção: Stefano Sollima. Roteiro: Taylor Sheridan e Will Staples. Elenco: Michael B. Jordan, Jodie Turner-Smith, Jamie Bell, Colman Domingo e Guy Pearce.

Nota: ★☆☆☆

Sem Remorso é um suspense de ação e espionagem baseado no livro Without Remorse, sucesso de vendas no New York Times em 1993, publicado por Tom Clancy com a intenção de expandir o universo da franquia Jack Ryan. A adaptação chega aos cinemas e à Amazon Prime como uma tentativa de criar uma nova franquia tendo John Kelly — que teve sua estreia como protagonista no já citado Without Remorse, e ganhou uma continuação em Rainbow Six, de 1998 — e aposta no carisma de Michael B. Jordan para tentar atingir o sucesso (ao menos de crítica) de outros atores que interpretaram Jack Ryan ao longo dos anos, sendo o último, o ator John Krasinski, que vive Ryan em uma lamentável série de TV criada pela própria Amazon, que usa e abusa da xenofobia na trama de suas temporadas.

Michael B. Jordan é John Kelly, um fuzileiro naval que busca vingança após o assassinato de sua esposa grávida pela máfia russa, e que se depara com uma conspiração política que envolve não apenas outros países, como também seus próprios chefes. Apenas pela sinopse podemos notar que estamos diante de mais uma trama cheia de clichês remanescentes daquela fase horrível de Steven Seagal que começou no fim dos anos 90 e se arrasta até os dias atuais. Já Solima, que havia dirigido o violento e lamentável Sicario: Dia do soldado, nos entrega um filme genérico de suspense e espionagem filmado em sua maioria em cenas de ação noturnas e editadas de modo desajeitado por Matthew Newman, parceiro habitual de Nicolas Winding Refn no ótimo Drive e nos fracos Só Deus Perdoa e Demônio de Neon.

Se no livro a trama acontecia durante a Guerra do Vietnã, aqui existe uma tentativa de modernizar a história. Logo, somos transportados para a Síria, onde uma guerra é filmada de modo dessaturado, quase em preto e branco. Não entendo o motivo pelo qual os roteiristas insistiram, no ano de 2021, em ainda usar o tema tão obsoleto e estereotipado plot device da “dead girl” como ponto de partida, vingança e redenção do protagonista. Nos anos 90, quando o livro foi publicado, isso talvez pudesse fazer sentido, já que com exceção de Twin Peaks, que abordou o tema com maestria em 1990, praticamente todas as produções de séries, minisséries e filmes de suspense/detetives usavam e abusavam da violência contra a mulher como entretenimento. Talvez a explicação mais plausível é o fato de que o filme esteve em desenvolvimento por mais de 20 anos, tendo homens como responsáveis pela produção. Vale ressaltar que usar esse artifício não faz uma produção ser necessariamente ruim, uma vez que séries recentes como Top of the Lake e True Detective são sensacionais.

Imagem: Warner Bros/ Divulgação

Como deve ter ficado claro, estamos diante de mais uma reciclagem hollywoodiana. Uma tentativa de transformar algo descartável em uma franquia de ação — algo que já tinha acontecido em 2015 quando Quarteto Fantástico, que com um orçamento de 155 milhões de dólares rendeu apenas 169 milhões de bilheteria. Inclusive, Quarteto Fantástico também era protagonizado por Michael B. Jordan e Jamie Bell. O motivo para estarem tentando criar uma franquia talvez tenha sido o fato de os três filmes de John Wick, estrelado por Keanu Reaves ser um sucesso mundial. Sem Remorso sofre com diálogos expositivos (um personagem conta detalhes confusos da trama para outro personagem para assim poder situar o espectador) e coincidências forçadas, como por exemplo, o fato de John Kelly saber exatamente a hora que um político russo estará saindo de seu hotel sem ter feito nenhuma investigação sobre os horários do sujeito. O fato de ainda tentarem usar a baboseira do patriotismo norte-americano como se isso fosse surtir resultados fora dos Estados Unidos também trabalha contra o filme. Até mesmo a fotografia do filme decepciona, principalmente por ser comandada pelo veterano vencedor do Oscar Philippe Rousselot, responsável por filmes belos e luxuosos como Ligações Perigosas e Constantine. E se olharmos as notas que o filme vem recebendo (5.8 no imdb, 44% de aprovação no Rotten Tomatoes, 3.7 no Metacritic, e 2.7 no Letterboxd), fica evidente que nem nos Estados Unidos o filme vai conseguir o sucesso desejado para a sua continuação, chamada até o momento de Rainbow Six. Existem dois possíveis fatores para as notas baixas que o filme vem recebendo: 1) o filme é realmente ruim, ou 2) fãs brancos e racistas podem estar avaliando o filme de forma negativa pois queriam atores brancos interpretando o terceiro personagem mais famoso de Tom Clancy. 

Se você chegou até aqui e está se perguntando o porquê de eu não escrever sobre as personagens femininas, isso é apenas um reflexo do roteiro, que transforma as poucas personagens femininas em marionetes que existem apenas para mover a trama — e o sucesso do protagonista. Lauren London faz o papel de Pam, a esposa assassinada e possui pouco mais do que duas cenas; já Jodie Turner-Smith, promissora atriz e protagonista de Queen and Slim é desperdiçada em um papel que tinha tudo para ser um veículo para transformá-la em uma estrela mundial imediata de filmes de ação, assim como aconteceu com Michelle Yeoh em 007 – O Amanhã Nunca Morre, ou mais recentemente, Brie Larson no divertido Kong: A Ilha da Caveira. Smith é simplesmente relegada ao papel de ajudante de Jordan, mesmo ele sendo um fuzileiro e ela uma tenente. Curiosamente, ao notar a ausência de personagens femininas importantes, bem como o tropo da dead girl, resolvi pesquisar sobre os responsáveis pelo roteiro. Sem surpresas, me deparei com o nome de Taylor Sheridan, roteirista de dois filmes que, apesar de excelentes, estão preocupados apenas com o protagonismo masculino: A Qualquer Custo, no qual personagens femininas são apenas esposas e Terra Selvagem, em que o personagem branco investiga o assassinato de uma mulher branca em uma reserva indígena.

Em suma, Sem Remorso falha por não atualizar completamente seus temas obsoletos, e por se preocupar primariamente não com o que está acontecendo, mas sim com suas possíveis continuações, onde cada cena e cada decisão é feita de forma automática, já que pontas precisam estar deliberadamente soltas, para serem amarradas em possíveis cenas pós-créditos ou em filmes futuros.


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2 Comentários

  • Responder
    Lorena Ribeiro
    14 maio, 2021 em 19:59

    CARAMBA! Eu tô aqui pensando: como William tem um olhar profundo sobre as questões envolvendo a trama… eu possivelmente não veria tantos desses detalhes, e agora já assistirei com outros olhos.

    • Responder
      William Alves
      24 maio, 2021 em 09:18

      Lorena! Que honra saber que você lê meus humildes textos! Ah, o filme é bem isso mesmo. Cumpre seu papel se o que o espectador estiver procurando for algo apenas para passar o tempo. Ele poderia ser bem melhor.

      Boa semana!

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