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Cinema LGBTQIA+

“Ratos de Praia” explora o armário como limbo sexual

Direção e Roteiro: Eliza Hittman. Elenco: Harris Dickinson, Madeline Weinstein, Kate Hodge e Neal Huff. Ano: 2017

Nota: ★★★★☆

Em “Ratos de Praia” (Netflix), Frankie (Harris) é um adolescente que luta contra sua atração por homens mais velhos ao mesmo tempo em que namora Simone (Madeline) e tenta lidar com a recente morte do pai por um câncer. Tudo isso enquanto se vê preso à uma heteronormatividade para poder se sentir pertencente a algum grupo, que no seu caso vem a ser seus amigos delinquentes e homofóbicos.

Independente de seu lugar dentro da comunidade LGBTQIA, qualquer pessoa, em um momento ou outro de sua jornada de descobrimento e aceitação, consegue reconhecer resquícios de seus traumas particulares na sinopse acima. A menina lésbica, bissexual ou pansexual que precisa enfrentar a heterossexualidade compulsória antes de se entender, se aceitar, e ser aceita; o rapaz gay, bissexual ou pansexual que é lido como heterossexual pela sociedade e por isso precisa agir como tal para poder ser aceito — pelos pais, amigos, parentes, etc —, mesmo que o custo dessa aceitação acabe sendo a invalidação de sua sexualidade. As ramificações dos males causados pela heteronormatividade em uma pessoa, como podemos ver, nos causam danos pelo resto da vida.

É sintomático, portanto, que já na primeira cena, Hittman (que ano passado dirigiu o também elogiado “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempr”e) aprisione Frankie dentro do espelho, que funciona como uma caixa literal — de expectativas e performances de gênero — ao mesmo tempo em que o divide em duas partes, quase como uma amostra da possível sexualidade do rapaz, que talvez por negação, ou simplesmente por não sentir necessidade de escolher sua sexualidade deixa claro várias vezes durante seus encontros com outros homens que ele não se considera nem gay, nem bissexual, nem pansexual. Em suas palavras: ele apenas gosta de fazer sexo com homens. Uma dica de talvez ele não se sinta necessariamente obrigado a se encaixar em, ou compactuar com alguma ideia pré-concebida de como e com quem um homem deve se envolver sexualmente. Muitas vezes, aliás, seus modos me fizeram chegar mesmo a vê-lo, talvez de forma inconsciente, como alguém que tenta desconstruir as expectativas de gênero nos impostas arbitrariamente pela sociedade.

Pode parecer, de acordo com o parágrafo acima, que Frankie está seguro de sua sexualidade, porém ele está apenas tentando achar uma resposta, algo que faça sentido em sua mente. É extremamente difícil, principalmente por experiências pessoais, vê-lo tendo dificuldades em aceitar sua atração, seja ela pelo corpo masculino nos encontros às escuras, ou pelo feminino, pois quando ele está com sua namorada, ele se sente evidentemente desconfortável, sem saber como tocá-la. Frankie é gay? Frank é bissexual? Isso dependerá da leitura pessoal de cada um. Há quem crave que ele é gay em fase de negação e ponto final! É particularmente doloroso, também, me reconhecer, enquanto um homem pansexual, em algumas ações do protagonista, que precisa performar uma heterossexualidade estereotipada quando está junto de seus amigos, uma vez que assim como Frankie, me percebo fazendo a mesma coisa, quase que de modo automático quando estou perto de amigos que não sabem das nuances da minha sexualidade.

Entendo como uma escolha acertada da diretora deixar Frankie livre para explorar sua sexualidade como passivo em seus encontros com homens, mesmo quando eles são claramente afeminados, pois assim ela desmistifica a ideia do machão ativo e do afeminado passivo, e assim consegue demonstrar as interseccionalidades e a fluidez da sexualidade humana. Outro detalhe interessante nas escolhas de Hittman é filmar de forma diferente os ambientes em que Frankie perambula de acordo com o gênero de sua companhia. Com seus amigos, por exemplo, ela dá atenção a pedaços abstratos dos corpos dos rapazes, que são constantemente filmados suados, sem camisa — sempre cortados por frames de um olhar —, e com um belíssimo olhar, ela transforma o simples ato de passar o baseado durante o pôr do sol em um dos momentos mais homoeróticos na história do cinema recente. Já quando ele está em encontros sexuais com outros homens, a diretora investe na escuridão e no desencontro da imagem com o som, criando cenas que causam um desnorteamento no espectador, assim como o que provavelmente está acontecendo com os desejos do protagonista. Finalmente, quando está com sua namorada, ele é constantemente banhado pela paleta neon da luz bissexual, como uma não tão sutil dica acerca da sexualidade do protagonista, ou talvez para simplesmente gerar expeculação e teorias por parte dos espectadores. Curiosamente, apenas um único personagem trata o relacionamento entre duas mulheres de forma fetichizada no filme: Simone. Ela protagoniza um dos momentos mais revoltantes do filme, quando Frankie, numa tentativa de se abrir sobre sua sexualidade, é recebido com o seguinte comentário machista e homofóbico: “Quando são duas mulheres se pegando é sexy. Quando são dois caras, é gay”. Com isso, Frankie acaba ceifando novamente seus desejos — o que infelizmente é algo muito comum, pois assim como nós homens, as mulheres também são criadas na mesma sociedade machista, binária e patriarcal, logo, acabam perpetuando esses tipos de comentários — sem mesmo perceber o efeito destruidor de suas palavras nas pessoas.

“Ratos de Praia” tem como ponto alto o fato da diretora fazer questão de não deixar claro para os espectadores qual a orientação sexual de Frank, até porque isso contribui para a normalização da fluidez sexual e para a aceitação de novas formas de masculinidades. Porém, se olharmos nas entrelinhas e nos detalhes poderemos saber a orientação sexual do rapaz. Uma ótima opção para quem se interessa pelos estudos da sexualidade, e também para os fãs de cinema queer que buscam uma perspectiva feminina sem fetiche ao abordar o corpo masculino, algo praticamente inexistente nos filmes sobre mulheres LGBTQIA dirigidos por homens, sendo Sebastián Lelio (“Uma Mulher Fantástica”, “Desobediência”) e Todd Haynes (Carol) dois dos poucos exemplos na história recente que possuem a sensibilidade necessária para contar essas histórias. 


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