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Educação

Paulo Freire e Ira Shor debatem a educação emancipadora em “Medo e Ousadia”

“Quando pensamos na linguagem como algo comprometido, também, com as classes sociais, compreendemos o problema da sala de aula mais facilmente.” – Paulo Freire

Se em Alfabetização: Leitura do Mundo, Leitura da Palavra, Paulo Freire e Donaldo Macedo fizeram uma minuciosa dissecação do método freireano de alfabetização, agora, em Medo e Ousadia, publicado pela editora Paz & Terra, com tradução de Adriana Lopes, Freire recebe o professor norte-americano Ira Shor para uma conversa descontraída —  que ele chamou de livro falado — no intuito de fazer com que a teoria atingisse o cotidiano popular, e para isso, os dois abordam uma variedade de tópicos, entre eles, a urgência de uma mudança de abordagem dos professores da época, que segundo eles, abusavam de uma linguagem extremamente acadêmica e chata; a ligação entre o racismo, sexismo e o capitalismo; e o avanço do fascismo e da extrema direita em ambos os países.

A conversa entre os dois pode ser entendida como uma recusa em aceitar — bem como uma forma de buscar alternativas para — a pedagogia tradicional que, de acordo com Shor, estava “motivando os estudantes contra o trabalho intelectual.” (p. 20). O motivo se deve ao fato de que os professores, com medo de represálias, ou mesmo demissões, acabavam seguindo o rumo da corrente em vez de apostar na educação libertadora. Com isso, eles simplesmente transferiam seu conhecimento aos alunos, quando, na verdade, a opção correta deveria ser conhecê-los e receber deles algum tipo de conhecimento, e só depois partir para o ensino, dessa vez bem mais rico, baseado no diálogo com os alunos. Uma educação em que alunos e professores aprenderiam juntos como conhecer o conhecimento. O ponto chave para entender as questões abordadas por Freire e Ira é que, segundo eles, o método de educação tradicional é um mero sistema de distribuição que comercializa as ideias, não desenvolvendo o pensamento crítico de cada aluno. No início do ano letivo, o professor deveria chegar na sala de aula preparado para desconstruir seu conhecimento, o reconstruindo gradativamente à medida que aprendia sobre a vida dos alunos.

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O capítulo 6, intitulado “Como podem os educadores libertadores superar as diferenças de linguagem existentes entre eles e os alunos?” é, ao meu ver, o ponto alto do livro. Em determinado momento, por exemplo, os dois autores começam a discutir como o sexismo, o racismo e capitalismo estão diretamente ligados, e como é praticamente impossível discuti-los de forma individual. Freire e Shor criticam duramente a linguagem extremamente acadêmica de sala de aula, que segundo eles, afasta os alunos, quando na verdade deveria servir como um portal para que eles pudessem aprender e absorver os ensinamentos para aplicá-los futuramente em suas vidas. De fato, a esmagadora maioria dos professores que tive era especialista em despejar a matéria em nós, usando o que Freire chamava de “método bancário de ensino”. As aulas eram maçantes e intermináveis, e nossa mente estava em qualquer lugar, exceto na sala de aula. Um fato importante a ser destacado é que segundo Freire e Shor, alguns professores construíam (e com certeza ainda constroem) todo o seu semestre sem levar em consideração a classe social dos alunos, produzindo, assim, uma barreira na comunicação entre eles.

Paulo Freire e Ira Shor

Escrito entre 1984 e 1986, o livro ganha um tom de premonição devido à onda fascista e reacionária enfrentada por ambos os autores daquela época, e que parece estar prestes a estourar novamente — ao menos no Brasil, que vem sofrendo com o des-governo negacionista e terraplanista do atual presidente, que é pautado pela imbecilidade, pela misoginia, pelo racismo, pela homofobia e pelo anticientificismo.

Shor, partindo de sua experiência nos Estados Unidos, começa uma interessante conversa sobre as origens do individualismo americano, do mito do Self-Made Man (A ideia de que o sucesso de cada um depende exclusivamente dele próprio, ignorando fatores como classe, raça e gênero), que por sua vez, é intrinsecamente ligado à falácia do Sonho Americano. Usando a escravidão como ponto de partida, Shor é didaticamente enfático ao demonstrar como é fácil para o norte-americano branco, cis e heterossexual se autoproclamar um self-made man quando toda a sua riqueza foi construída através de séculos de escravidão, passando por gerações da mesma família, e posteriormente, com o extermínio dos indígenas. Em outras palavras: existiram — e existem — sim oportunidades, desde que você seja branco e esteja disposto a cometer crimes contra a humanidade.

Apesar de ser um dos melhores livros do Paulo Freire que eu li até hoje, Medo e Ousadia é repetitivo em certos momentos. Não apenas como uma obra independente, mas também ao abordar conceitos já conhecidos do método freireano de educação. De qualquer forma, essa repetição só será percebida por quem já tem alguma familiaridade com a escrita do autor. Logo, considero o livro — devido ao dinamismo da escrita em forma de diálogo — uma ótima opção para quem pretende ter o primeiro contato com as ideias de Paulo Freire. 


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