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Feminismo

O feminismo Punk de Virginie Despentes em “Teoria King Kong”

ALERTA DE GATILHO: ESTUPRO

É impossível escrever sobre a obra sem abordar o tema, uma vez que a autora não apenas reconta o seu próprio estupro aos 17 anos, como usa o trauma para abordar diversos temas, incluindo a revolução sexual francesa, o feminismo e o conservadorismo francês, fantasias sexuais envolvendo o crime sofrido, bem como a inspiração para seu primeiro livro.

“As santas amarradas, queimadas vivas, os martírios foram as primeiras imagens a me provocar emoções eróticas” — Virginie Despentes

Publicado no Brasil em 2016 pela editora N-1 Edições, Teoria King Kong (tradução de Márcia Bechara) é uma simbiose de memórias, teoria crítica, manifesto feminista e punk rock. Através de um recorte filosófico, Despentes escreve — sem culpa, sem arrependimentos, sem se desculpar — sobre suas raivas, dores, traumas e sucessos. A autora aborda toda sua trajetória desde a adolescência, suas experiências sexuais, seus empregos como jornalista do ramo pornográfico, sua breve carreira como profissional do sexo — onde ela traça paralelos entre a prostituição e o casamento heterossexual — e finalmente, como escritora bem-sucedida e diretora de cinema.

Despentes abre o livro com “Eu te fodo ou você me fode?”, capítulo em que analisa a hipocrisia e o conservadorismo francês. Segundo a autora, sua geração acabou carregando a culpa da revolução sexual francesa dos anos 70. De acordo com seu entendimento, as mulheres francesas vivem em um não lugar sexualmente: “…não trepamos como deveríamos, ora muito vadias, ora muito ternas e amorosas.” (p. 13). Nesse primeiro ensaio — que entre outras coisas, a autora denuncia os abusos da mídia da época com sua ditadura estética da magreza — o que fica evidente, uma vez que ela começa a descrever sua atividade sexual, como começou a usar anticoncepcionais aos 14 anos e que embora tenha transado “com centenas de caras” (p. 14) nunca era vista como um monstro social, foi a importância da educação sexual para adolescentes. Se pensarmos em Brasil, onde a direita conservadora luta para que a educação sexual seja banida das escolas, esse primeiro ensaio ganha ainda mais importância político-social.

Através das lembranças do lançamento de seu primeiro livro em 1994, o polêmico romance Baise-Moi (infelizmente ainda sem tradução para o português), inspirado em seu próprio estupro, ela começa a abordar a hipocrisia da sociedade francesa quando seu primeiro filme, uma adaptação de Baise-Moi foi banido na França. É no mínimo interessante o fato de que Virginie, que em suas palavras, é uma mulher que escreve “para todas as excluídas do mercado da boa moça” (p. 7) tenha visto seu filme ser censurado e banido em seu país, sendo que anos mais tarde, “Elle”, do diretor Paul Verhoeven, que aborda o mesmo tema, foi calorosamente escolhido pela França como seu representante no Oscar de 2017. O que isso quer dizer? Que quando uma mulher usa o estupro como recurso narrativo ela será massacrada, mas quando um homem faz o mesmo, ele é idolatrado? Infelizmente é algo comum ver homens ganhando os louros por obras que ganhariam muito mais se partissem de um olhar feminino.

Em uma dura crítica à heterossexualidade compulsória e às propagandas pró-maternidade, a autora elabora um pequeno estudo-dentro-de-outro-estudo onde fica evidente que para a sociedade da época, obviamente comandada por homens brancos, a vida da mulher — e de seus filhos — não fazia parte dos planos, uma vez que essa maternidade compulsória era imposta às mulheres sem que uma infraestrutura social fosse criada para que as famílias pudessem viver. Insistiam que a maternidade era maravilhosa e faria as mulheres se sentirem “mais realizadas do que nunca.” (p.18), mas propositalmente deixavam de lado o fato de que essas mulheres dariam a luz em cidades totalmente devastadas, sem escolas, sem empregos e sem nenhuma perspectiva de felicidade.

Créditos: https://www.institut-francais.org.uk/

De modo franco, a autora escreve sobre o seu próprio estupro no ensaio intitulado “Impossível estuprar essa mulher cheia de vícios”, sem dúvidas, o ensaio mais polêmico do livro. O título, que a princípio pode trabalhar contra o texto, é uma crítica ao costume conservador de culpar sempre a mulher quando ela é vítima de abusos sexuais. Seja pelas roupas (“ela usava saias curtas, logo, estava querendo ser assediada”), seja pelos costumes (“ela é uma mulher fácil, que sai com todos”), ou pelo trabalho (“ela é garota de programa, é claro que não foi estupro”). O ponto de partida é precisamente a ideia criminosa de que uma mulher não pode ser estuprada porque ela está, de forma inerente, sempre à procura de sexo. Neste ensaio, a autora rebate a falácia francesa de que o aumento do número de estupros “civis” subiu desde que os homens franceses deixaram de ir à guerra após os anos 60. O que nos leva a entender que a vida militar é usada como pretexto para que homens possam estuprar mulheres em países assolados pela guerra. Neste ensaio a autora escreve de forma gráfica o ocorrido, bem como foi seu processo de entender e lidar com as sequelas.

“Mas o que é excitante em geral é vergonhoso frente à sociedade.” — Virginie Despentes

No mesmo ensaio, a autora percorre sem medo por alguns temas considerados tabus, como por exemplo, mulheres que fantasiam sexualmente que estão sendo estupradas. Despentes parte de uma lente psicanalítica ao analisar as origens desta fantasia através de suas próprias experiências — mas deixa claro que nenhuma mulher é igual, que não está generalizando —, e de acordo com ela, “trata-se de um dispositivo cultural onipresente e preciso, que predestina a sexualidade das mulheres a gozar de sua própria impotência, quer dizer, da superioridade do outro, e, ao mesmo tempo, a fazê-lo contra sua própria vontade […]” (p. 48).

Ao escrever sobre a sua relação com a pornografia, Despentes usa a vergonha causada por nossos desejos perante à sociedade, e como nos preocupamos em não deixar transparecer aquilo que realmente gostamos entre quatros paredes, além de abordar a masturbação feminina, que a seu ver, é vítima de uma sociedade machista e falocêntrica, que desde sempre condiciona mulheres a esperar orgasmos com a ajuda masculina, ou pior, a apenas se contentar com o gozo do parceiro sexual. Um gozo pautado pela fragilidade masculina, uma vez que muitos homens heterossexuais costumam lutar contra desejos que aos olhos da sociedade, não deveriam ser sequer cogitados. Como resultado, vivem num paradoxo de insegurança e violência. No último ensaio, a autora escreve se quer ou não ser um homem, e de modo primoroso conclui o que presenciamos diariamente: que homens não amam as mulheres, eles amam, na verdade, outros homens, ainda que, às vezes, através de uma mulher. Esse pensamento pode ser presenciado nas academias, onde homens gastam rios de dinheiro e incontáveis horas atrás do corpo perfeito… apenas para serem admirados por outros homens igualmente sedentos por elogios masculinos, a famosa “brotheragem”.

Em última análise, apesar de falar de suas experiências pessoais, Despentes nos brinda com uma obra que nos faz reavaliar, entender e até mesmo confrontar nossa própria relação com a vergonha enquanto ferramenta solapadora de desejos, uma vez que nossa sexualidade funciona de modos complexos. Muitas vezes, ao nos darmos a chance de nos conhecermos intimamente — sozinhos, em pares ou em grupos — podemos acabar descobrindo aspectos de nós mesmos que podem nos assustar caso sejam diferentes do que é considerado aceitável nessa sociedade hipócrita, racista e cisheteronormativa. Devemos perder o medo do toque, da vergonha e descobrir do que de fato gostamos, porque o caminho contrário leva à uma vida infeliz de adequação social e sexual.


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