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Literatura negra

Zora Neale Hurston e a emancipação feminina em “Seus olhos viam Deus”

Alerta de gatilho: MENÇÃO DE ESTUPRO

Quão longa, inesperada e trágica pode ser a jornada de uma mulher negra em busca de liberdade e felicidade no início do século XX? 

Contada em flashbacks, a história de Janie Crawford — que ganha nova edição publicada no Brasil pela editora Record — se alterna constantemente entre narradores em terceira e primeira pessoa desde os trágicos nascimentos de sua avó Babá, uma ex-escravizada que ao ser estuprada pelo seu dono dá a luz à Leafy, que por sua vez, dá a luz à Janie após ser estuprada pelo seu professor de escola negro. Como ficou evidente, toda a existência da família de Janie foi construída por traumas como alicerces, porém, engana-se quem acha que a tristeza termina ali.

Publicado originalmente em 1937, Seus olhos viam Deus, romance escrito por Zora Neale Hurston pode ser considerado como um exemplo primoroso do gênero literário Southern Gothic. E se hoje é considerado um clássico feminista do Renascimento do Harlem, à época de seu lançamento foi criticado por vários intelectuais negros, que acusavam a autora de escrever personagens negros estereotipados — em outras palavras: ao mesmo tempo dar combustível a brancos racistas e perpetuar os estereótipos que os negros lutavam para se livrar — e recebido com apatia pelo público —, até a década de 80, quando foi redescoberto pelo grande público graças à Alice Walker.

Forçada pela avó, Janie se casa aos 12 anos com Logan Killicks, um homem mais velho, mas o abandona quando percebe que o sujeito não queria uma esposa, e sim uma empregada. Eventualmente Janie foge com Joe Starks, um homem da sua idade, para Eatonville, uma nova cidade só de pessoas negras. Lá eles se casam, prosperam como Prefeito e Primeira-dama da cidade, mas logo Janie percebe que Joe é influenciado pela opressão que sofreu ao trabalhar para pessoas brancas, e como resultado, trata todos mal, além de a querer apenas como uma espécie de esposa-troféu e a proíbe de participar da vida social da pequena cidade. Em outras palavras, Joe está simplesmente tentando transformar Janie em uma daquelas esposas brancas de classe média. Esse casamento-pesadelo dura cerca de 20 anos até que Joe morre devido a problemas nos rins. 

Rica, linda, viúva e ainda à procura do amor aos 40 anos, Janie conhece Tea Cake, um forasteiro na faixa dos 25 anos, e contra todos os avisos, ela vende sua casa, se casa com Tea Cake e vai viver com o sujeito em um brejo próximo ao lago Okeechobee, onde junto com centenas de outros personagens, sobrevivem graças ao cultivo de feijão e cana.

Nesse momento o leitor — deste texto e do romance — com certeza vai se perguntar como uma mulher bonita e rica, que não apenas é a ex-Primeira dama, como também dona de uma cidade inteira (ela e Joe eram donos da maioria das lojas, dos correios, e dos terrenos) aceitou vender tudo o que tinha, guardar o dinheiro no banco, e ir viver no meio do mato com um sujeito que, ainda que amoroso e trabalhador — ao seu modo —, possuía todos os traços de masculinidade tóxica de seus ex-maridos? A resposta mais simples? O amor. As andanças, o modo livre e simples de viver de Tea Cake era tudo que ela queria desde adolescente, e todos os seus ex-maridos a trataram como como objeto, ou como empregada, ou como esposa submissa. Agora Janie era a mulher que sempre quis ser.

Porém, como foi dito no primeiro parágrafo, a tristeza das pessoas negras não têm fim no romance de Zora Neale Hurston. Quando Jane e Tea Cake parecem ter finalmente achado a felicidade, o romance atinge o clímax quando o brejo onde eles viviam é devastado pelo Lago Okeechobee, cuja barragem foi destruída por um furacão — evento inspirado no Grande Furacão de 1926. Seus olhos viam Deus já poderia ser considerado um épico antes mesmo de seu clímax repleto de destruição, tragédia e morte.

Zora Neale Hurston fotografadas por Carl Van Vechten

É preciso ter cuidado para não estragar a experiência do leitor com spoilers, portanto, irei me dedicar na sequência ao modo como a autora escolheu retratar os personagens negros, às críticas recebidas à época do lançamento, bem como alguns outros temas como: masculinidade x feminilidade, espectativas de gênero, o movimento de libertação das mulheres e violência doméstica. Só peço, ou melhor, espero encarecidamente que o leitor reconheça o modo primoroso que Zora Neale Hurston usou o conceito “Arma de Chekhov” em determinado momento da narrativa.

Primeiro, as críticas. Muitos intelectuais negros que faziam parte do Renascimento do Harlem reagiram negativamente ao romance, sendo Richard Wright, autor de Filho Nativo; Ralph Ellison, autor de Homem invisível; e Alain Locke, autor de The New Negro apenas alguns deles. Wright chegou inclusive a comparar Seus olhos viam Deus com o blackface. Segundo ele, era “um romance que fazia na literatura o que os artistas brancos pintados com a cara de preto faziam no teatro, quer dizer, provocar gargalhadas nos brancos” (p. 8), e que o romance estava mais preocupado em “explorar os ‘aspectos exóticos’ da vida dos negros que satisfaziam os gostos do público branco.” (p. 8) Já Locke criticou uma suposta falta de preocupação política, social e racial da autora, que se limitava a escrever “pseudoprimitivos dos quais o público ainda gosta de rir.” (p. 8) Mas será que essas duras críticas têm fundamento?

De fato, no primeiríssimo momento, a linguagem usada pelos personagens causa estranhamento. Cheguei inclusive a pensar se esse “carregamento” de erros de português tinha sido causado pela tradução, mas quando analisei o texto original em inglês percebi que lá também a linguagem era a mesma. Ou seja: a tradução de Marcos Santarrita é impecável. Existe, claro, uma linha tênue entre manter a linguagem original como documento histórico (sendo o exemplo mais recente a aclamada minissérie “The Underground Railroad”, brilhantemente dirigida por Barry Jenkins), ou simplesmente usá-la para gerar riso nos leitores/telespectadores (como era comum nas produções de teatro e cinema dirigidas por pessoas brancas das décadas de 20, 30 e 40 nos Estados Unidos). E de fato, qualquer leitor que seja familiarizado com o cinema clássico norte-americano consegue reconhecer quando a intenção é ridicularizar. Fica a critério de cada leitor decidir qual caminho foi usado por Zora Neale Hurston.

Masculinidades tóxicas, expectativas de gênero, feminismo e violência doméstica

Se Simone de Beauvoir cunhou a mulher como o Outro, e Grada Kilomba foi além ao escrever que a mulher negra é o Outro do Outro, aqui essa frase ganha outra magnitude, visto que a avó de Janie diz que “o branco larga a carga e manda o preto pegar. Ele pega porque tem de pegar, mas num carrega. Dá pras mulher dele. As preta é as mula do mundo.” (p. 34). De fato, em maior ou menor grau, todos os homens de Seus olhos viam Deus tratam as mulheres como mulas e não escondem de ninguém que gostam de bater em suas esposas na primeira oportunidade. Em outras palavras, as mulheres negras não apenas sofrem com a opressão de mulheres e homens brancos, mas também de seus próprios maridos — que no romance são homens negros. Uma das passagens mais tocantes, aliás, por incrível  que pareça, não envolve um ser humano, mas sim uma mula que morre lentamente após ser usada como ferramenta de trabalho por toda a sua vida. Estudiosos dizem que os homens negros “herdaram” essas noções tóxicas de masculinidade dos homens brancos aos quais eram subordinados, e portanto, esse era o único exemplo de masculindade que eles tinham no pós-escravidão. Existe, inclusive, uma lamentável cena protagonizada por Tea Cake — teoricamente o único homem negro do romance que não foi influenciado pelos valores tradicionais da branquitude masculina — em que ele paga dois dólares para que as mulheres que ele considerava feias não participassem de sua festa.

No final da década de 70, o romance foi redescoberto graças aos esforços de Alice Walker através de seu ensaio “Looking for Zora” publicado em 1975, e desde então vem sendo estudado como um exemplo primoroso do que pode ser entendido como um proto-feminismo negro. Janie é uma mulher negra por toda a vida teve sua voz solapada por homens à sua volta, portanto, é no mínimo curioso — para não dizer anticlimático — o fato de que em determinado momento, após o clímax, quando ela finalmente tem chance de usar a sua voz, ela é novamente solapada, mas dessa vez não por algum homem, mas sim pela própria autora, que decide usar a narração em terceira pessoa. 

Seus olhos viam Deus é um romance que apesar de não ser perfeito, prende a atenção do leitor devido aos vários recortes que podem ser feitos. Podemos direcionar nosso olhar à discussão acerca da feminilidade negra, à opressão racial, ou até mesmo fazer um recorte filosófico da mulher negra enquanto um ser que tem o ascetismo imposto pela branquitude. Ou seja: a mulher negra acaba praticando a abstinência sexual e sensual contra sua vontade porque é entendida como serviçal e submissa por todos à sua volta. Existe ainda o fator “sem rumo” da história, principalmente quando Tea Cake é apresentado, porque ainda que não seja exatamente um homem ideial, ele tem certamente seu charme — não é por acaso que Janie o seguiu cegamente. Acho também que quem já conhece as obras de Toni Morrison — mais precisamente O olho mais azul e Paraíso —; ou o romance The women of Brewster Place, de Gloria Naylor vai gostar do falho, porém eficiente romance de Zora Neale Hurston, uma vez que assim como as obras citadas, aqui o leitor vai encontrar uma enorme variedade de personagens, bem como longas e épicas jornadas em busca de um objetivo que atravessam gerações de uma mesma família. Cabe ao leitor decidir se Janie de fato atingiu seu objetivo de obter sua voz ao final de Seus olhos viam Deus.


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2 Comentários

  • Responder
    Viviane
    22 novembro, 2021 em 09:35

    Nossa Willian, fiquei em choque com sua perspectiva de que o livro é falho. Este livro é de tirar o fôlego, tens que tomar muito cuidado para não julgar os “erros de português”, isso é preconceito linguístico, muito usado como instrumento de dominação de grupos sociais. Como as pessoas daquele contexto falam é uma das grandes riquezas dessa obra, elas mesmas recriaram sua língua, a partir de sua própria epistemologia e cultura. Lembre-se que a Zora era antropóloga, a primeira a registrar em imagem e som as cidades negras do sul dos EUA. Isso deveria ter sido levado em consideração na sua leitura.

    • Responder
      William Alves
      22 novembro, 2021 em 09:58

      Oi, Viviane, eu realmente acho que o livro é de tirar o fôlego, principalmente no terceiro ato da narrativa. Eu gostei muito do livro, apesar de não achá-lo perfeito. E sobre a questão da linguagem, não foi uma crítica minha. Eu apenas citei as críticas que o romance e a autora receberam dos intelectuais da época. Já a linguagem, eu não disse que era caricatural, exótica ou errada, mas que existia uma linha tênue que cada leitor deveria decidir se foi cruzada ou não. Eu mesmo não acho que foi o caso aqui.

      Grande abraço e obrigado pela leitura e pelo comentário.

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