0
Cinema

“Summer of Soul” celebra culturas e musicalidades negras dos anos 60

Título original: Summer of soul (…or when the revolution could not be televised). Ano: 2021
Direção: Questlove.
Nota: ★★★★★

Dirigido por Ahmir “Questlove” Thompson, Summer of Soul é um documentário lançado em 2021 sobre o Harlem Cultural Festival, ocorrido no Harlem em 1969 entre os dias 29 de junho e 24 de agosto. Na ocasião, mais de 300 mil pessoas puderam acompanhar de forma gratuita nomes como Nina Simone, B.B. King, Sly and the Family Stone (cuja segurança foi feita pelos membros do grupo Panteras Negras), Abbey Lincoln & Max Roach, Gladys Knight & the Pips, Stevie Wonder (então com apenas 19 anos) e Mahalia Jackson.

Curiosamente, o Festival de Woodstock, muito mais conhecido em termos musicais e culturais — apesar de ter ocorrido no decorrer de apenas um final de semana —, acontecia simultaneamente. Fato que contribuiu para o esquecimento do Harlem Music Festival, ainda que um dos organizadores tenha tentado informalmente batizar o festival de “Black Woodstock” para tentar fazer com que alguém comprasse as gravações do festival e as lançasse como filme — assim como aconteceu com o Festival de Woodstock, lançado um ano depois de sua realização.

Como resultado, os rolos de filmes contendo mais de 40 horas de gravações ficaram abandonados em um porão por cerca de 50 anos, até que o músico (baterista da icônica banda de hip-hop The Roots), diretor, produtor e professor Questlove, decidiu que ele poderia e deveria mostrar ao mundo a importância musical e cultural de um festival que celebrou a cultura, a musicalidade e a beleza negra em conjunto com outras culturas e musicalidades, como afrocêntricas, latinas e cubanas — em uma época de segregação não apenas racial, mas também musical e de gênero.

Mesclando entrevistas atuais de pessoas que estiveram presentes no Festival com trechos das apresentações musicais (assistidas por estas pessoas durante as entrevistas), e outras ocorrências sociais e políticas da época, Questlove entrega um filme que emociona, por exemplo, ao recontar os últimos minutos de Martin Luther King através das palavras de um dos apresentadores do festival, que estava ao lado de King quando ele foi assassinado. A cena nos emociona ainda mais devido à música cantada por Mavis Staple e Mahalia Jackson, que foi requisitada por King segundos antes de ser morto.

“Até onde eu conseguia ver, eram apenas pessoas negras. Esta foi a primeira vez que eu vi tantos de nós. Famílias, pais, mães, filhos correndo em volta. Lindas mulheres, lindos homens. Era como ver a realeza.”  – Musa Jackson.

Sobre a segregação musical, é importante destacar a presença da banda Sly and The Family Stone não apenas no festival, mas no contexto histórico. Fazendo sucesso em uma época em que músicos do “Pop” (brancos) não cantavam “Black Music”, e os músicos negros não cantavam pop, o grupo veio para unir as tribos ao contar não apenas com músicos brancos (o saxofonista Jerry Martini e o baterista Greg Errico), como também com mulheres instrumentistas (Cynthia Robinson, vocalista e trompetista, e Rose Stone, vocalista e tecladista) e não apenas como dançarinas para serem hipersexualizadas.

Apesar de ter sido patrocinado de forma satisfatória pela cidade de Nova York, os organizadores não tinham uma verba exorbitante, por isso escolhas tiveram que ser feitas. Como por exemplo, o fato de que eles não poderiam gastar com iluminação, fato que precisou ser remediado de uma forma até simples, porém esteticamente bastante eficiente: o palco teria que ser construído em outra posição, virado para o sol. Assim, as bandas e os músicos estariam sempre iluminados, e uma vez que os shows aconteciam a partir das três horas da tarde, o pôr do sol se tornava um acontecimento belíssimo durante o clímax das apresentações.

Politicamente, o festival serviu também como uma espécie de escape da dura realidade enfrentada pela população negra nos últimos anos. Além da crise das drogas, da violência policial e do desemprego, haviam os assassinatos de líderes negros e de políticos brancos preocupados com a comunidade negra: John F. Kennedy (assassinado em 1963), Malcolm X (assassinado em 1965), Martin Luther King e Robert Kennedy (ambos assassinados em 1968) e Fred Hampton (assassinado pelo FBI em 1969). Após todas estas tragédias, a população negra estava se sentindo abandonada pelo sistema. Não à toa, um dos entrevistados diz, de forma brincalhona, mas com uma seriedade visível, que de certa forma, o Harlem Cultural Festival existiu para que os cidadãos negros não destruíssem a cidade de Nova York em 1969. Curiosamente, diversas pessoas estão reconhecendo seus parentes próximos nas imagens do documentário, demonstrando que não apenas o filme serve como uma cápsula documental de algo culturalmente importante, mas também como uma espécie de álbum pessoal de fotografias perdido, reencontrado por dezenas de pessoas espalhadas pelos Estados Unidos.

Ainda sobre o contexto politico-racial da época, é importante destacar dois detalhes. O primeiro: o homem chegou à lua durante o festival, fato que foi recebido com desdém por vários entrevistados durante o ocorrido. Segundo eles — e com razão — o dinheiro gasto para levar o homem à lua poderia ser usado de forma mais importante: ajudando as famílias negras e latinas em situação de pobreza. De forma sintomática, todos os entrevistados brancos se mostraram muito mais entusiasmados com o acontecimento. O segundo detalhe está relacionado com uma mudança, a princípio, apenas de linguagem, mas que significava muito mais, com raízes mais profundas. Segundo os entrevistados, o festival se torna também simbólico por acontecer no ano da morte do termo “Negro” (em inglês, que usado pejorativamente, causava vergonha e raiva nos negros), e o nascimento do termo “Black” (como uma forma de demonstrar orgulho da raça).

Apesar de conter dezenas de momentos emocionantes, singelos e marcantes, nada se compara à entrada de Nina Simone ao palco. De postura imponente e um deslumbrante vestido amarelo, a cantora começa a cantar “Backlash Blues”, uma música composta pelo poeta e líder do Movimento do Harlem Renascentista Langston Hughes para o Movimento dos Direitos Civis. Termino este texto com a tradução de um trecho dessa música tão emblemática e ainda tão atual:

“Quem você pensa que eu sou?
Você aumenta meus impostos
congela o meu salário, e manda
o meu filho pro Vietnã. Você me
dá casas de segunda classe
e escolas de segunda classe.
Você pensa que todas as
pessoas de cor são apenas
tolos de segunda classe?”

Você poderá gostar

1 Comentário

  • Responder
    Cleusa
    30 abril, 2022 em 22:33

    Nossa que legal! Recentemente ouvi ou li alguma coisa sobre esse documentário e depois de ler sua resenha vou assistir com certeza! Amo black music, primcipalmemte dessa época ❤

Deixe um comentário