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Não-ficção

África do Sul e Apartheid em “A trilha percorrida: Lições de vida do meu avô Nelson Mandela”, de Ndaba Mandela

Publicado pela editora Best Seller em 2022, A trilha percorrida: Lições de vida do meu avô Nelson Mandela é escrito por Ndaba Mandela, neto de Nelson Mandela e entusiasta dos ideais revolucionários do avô. Em sua primeira edição, com tradução de Maria Clara De Biase W. Fernandes, o livro está organizado em capítulos que possuem títulos de ditos populares da cultura xhosa, utilizados constantemente por Nelson Mandela nos diálogos que Ndaba descreve, inferindo significado para cada lição de vida ensinada por seu avô desde a infância.

Nelson Mandela foi um grande revolucionário anti-Apartheiteid, conhecido mundialmente por ser o primeiro presidente negro na África do Sul após 27 anos de prisão por defender o direito do povo negro durante uma parte do período de segregação racial. Também conhecido como Madiba, sofreu muitas violências pelo racismo e pela polícia, e foi e ainda é reconhecido por sua cultura de não violência, que para além de uma estratégia política também era parte de seu caráter: combater com coragem e resiliência todo e qualquer tipo de injustiça.

“Uma história é uma história; você pode contá-la como sua imaginação, seu ser e seu ambiente ditarem, e se sua história ganhar asas e se tornar propriedade de outros, você não poderá mais conta-lá”

O trecho citado acima materializa o fato de que a voz do contador de histórias africanas nunca se calou, mesmo quando tentaram silenciá-la e ainda hoje repercute em outras gerações na persistência de lutar contra injustiças raciais presentes na sociedade.

Os relatos afetuosos sobre Nelson Mandela tem a capacidade de fazer o leitor compreender qual era o peso de ser um dos Mandela. Com sua escrita intimista, leve e muito concisa, Ndaba Mandela possibilita que o leitor revisite em sua companhia momentos de sua infância e adolescência. Descreve várias de suas memórias envolvendo o leitor com a presença de seu avô, deixando muito claro como eram as lógicas de convivência entre si. Desse modo, é perceptível que há busca de significados pelo autor em diversos diálogos que descreve, trazendo a configuração adulta de Ndaba que busca de forma consciente simbolismos em cada história xhosa contada por seu avô durante os anos em que estiveram juntos. De raríssimas vezes em que viu seu avô no período de encarceramento, na África do Sul durante o Apartheid, à suas memórias de quando foi mandado morar com ele. Possibilitando ao leitor a compreensão de forma muito realista de como se davam preceitos sociais estabelecidos na África do Sul, enquanto, organizações de sociedade, relações familiares em classe, gênero e raça.

Ndaba conta como as pessoas brancas na África do Sul temiam a presidência de Madiba por ele ter sido encarcerado durante 27 anos. Pensavam que por isso ele poderia buscar formas de vingança contra seus opressores. Ndaba conta, também, como achava incompreensível o espírito solidário de compaixão que alicerçava não só o plano político de Madiba, mas também sua própria personalidade, mesmo depois de tantas experiências traumáticas e injustas permeadas pelo racismo.

‘’A liberdade é indivisível… O opressor deve ser libertado tanto quanto o inimigo. Um homem que tira a liberdade de outro é prisioneiro do ódio, está trancado atrás das grades do preconceito… Tanto o oprimido quanto o opressor têm sua humanidade roubada’’.

O autor também coloca de maneira aberta como se dão as relações sociais em famílias africanas, enquanto laço afetivo não monogâmico e laço sanguíneo familiar em suas tradições, organização em comunidade frente às circunstâncias sociais. Nas relações de casal se organizavam sem que houvesse distinções entre filhos ou mulheres, já que era comum que homens xhosa tivessem mais de uma mulher. As mulheres se organizaram como uma grande família visando sobretudo a criação de ambientes saudáveis e amorosos para criar seus filhos, deixando de lado conceitos aprendidos sobre como ‘’deveria’’ ser uma família.

O povo sul-africano e o mundo de maneira geral tinham expectativas sobre o governo de Madiba, que quando eleito foi chamado de ‘’O pai da nação’’, aquele homem revolucionário e íntegro, visto pelo mundo através de sua lupa da resiliência. O livro traz um movimento de resgate da sua face mais sensível. Em diversos trechos Madiba se mostra extremamente rígido frente a criação de Ndaba, não somente com suas tarefas diárias de dever de casa, bom comportamento na escola e boas notas, mas também em inferir através de seu próprio exemplo o autovalor. Em diversas situações é possível perceber a forma como Madiba se utilizava de ferramentas sutis na criação de seu neto com intuito plantar sua sementinha revolucionária que inundava os que tinham o sangue daquela família. 

Imagem: Observador.pt

Por essa razão era prioridade para Madiba que Ndaba entendesse desde sua infância o que era ser um Mandela e sobretudo ser um homem capaz de conduzir e subsidiar sua própria família depois que fosse para a montanha. Os diálogos entre o avô e o neto são quase que em sua totalidade muito contidos, sem grandes demonstrações sentimentais, apesar de sempre afetuosos em suas conversas. É possível ficar imerso na condição de respeito soberana que permeia em ambos, por exemplo, na integridade de não chorar em público quando algo desperta vontade, porque isso na cultura xhosa é a definição de estar qualificado para ser um homem de verdade.

Dessa forma, é possível perceber como as relações masculinas de lealdade e amizade são levadas a sério, contratos sociais entre os homens na cultura xhosa são levados com extrema responsabilidade, pactos que quando estabelecidos através de ações realmente se mostravam valiosos. Em contrapartida, a quebra dos mesmos é visto de maneira muito delicada e muitas vezes irreparável. Ndaba expõe o quanto o perdão não é para os fracos exigindo assim estômago forte para ser executado.

Para além das questões pessoais, o autor expõe a importância dos questionamentos sociais levantados em relação a descolonização da África do Sul frente aos números que indicam que 1% dos sul-africanos predominantemente brancos possuem 70,9% da riqueza da nação e os 60% predominantemente negros possuem cerca de 7% da riqueza do país. Ndaba discorre em vários trechos sobre como a continuidade do colonialismo e do Apartheid criou uma sociedade extremamente desigual. Além da estigmatização da África através da perspectiva estadunidense que por meio de apelos pejorativos expõe crianças com olhos arregalados e barrigas inchadas propagando a ideia de que doações são a forma adequada de melhorar a situação do país, sem que haja correção de políticas socioeconômicas de exploração na África.

‘’O único modo pelo qual a minoria esmagadora branca podia controlar a esmagadora maioria negra era mantê-la pobre e com medo, e esmagá-la, década após década, usando uma fábula horrível e mentirosa sobre sua inferioridade’’.

Através desses questionamentos relacionados com ditos de Madiba, histórias xhosa contadas por ele e até mesmo diálogos entre o neto e avó: ‘’o passado pode doer. Mas na minha opinião, você só pode fugir ou aprender com ele’’. Por esses e outros ensinamentos que conduzem a escrita de Ndaba é possível ser contagiado com o otimismo no futuro e na ocupação de espaços como o veículo mais legítimo para encontrar a liberdade que tanto foi negada às pessoas negras. A sabedoria de Madiba nos ensina que é possível vislumbrar através dos problemas e encontrar esperança no que chamo de sua força propulsora. Nelson Mandela deixou seu legado ressoando no mundo mesmo após sua partida. 

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1 Comentário

  • Responder
    Cleusa
    30 abril, 2022 em 21:54

    Que privilégio ser neto de Nelson Mandela! Esse homem maravilhoso que sofreu tantas injustiças, ficou preso por quase 30 anos e mesmo assim não se revoltou, pelo contrário, continuou a lutar pelo fim do apharteid e Venceu! Adorei sua resenha! Vou ler.

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