0
Literatura estrangeira

Julie Otsuka traz a xenofobia norte-americana para o primeiro plano em “Quando o Imperador era divino”

Após o Ataque a Pearl Harbor em dezembro de 1941, o então presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt ordenou o encarceramento forçado de mais de 120 mil pessoas de descendência japonesa — incluindo os nascidos nos Estados Unidos — em campos de concentração no interior do país. A xenofobia e o racismo foram o motor desta histeria anti-japão, em que várias famílias foram separadas com o pretexto de serem espiões japoneses. Pais eram separados de seus filhos por vários anos, sendo a comunicação feita apenas por cartas pesadamente censuradas,  e quando (ou se) retornavam com vida destes campos de concentração, suas vidas nunca voltavam a ser como antes; mulheres viúvas precisavam cuidar do que restou de suas vidas, bem como a de seus filhos. E quando os pais e maridos conseguiam voltar, enfrentavam o ostracismo em suas cidades, pois eram vistos como inimigos por todos em volta, e como resultado, não conseguiam recuperar seus empregos antes da guerra, ou conseguir novos meios de ganhar a vida.


Conheça o clube de leitura Pacote de Textos e use o cupom “IMPRESSOES10” para frete grátis no primeiro mês.

É neste cenário devastador da Segunda Guerra Mundial que acontece a trama de Quando o Imperador era Divino, romance de ficção histórica, estreia da autora Julie Otsuka. Publicado originalmente em 2002 e tendo como base as experiências de guerra de sua própria família, a autora nos conta uma história repleta de trauma em que, através de 4 pontos de vista — mãe, pai, filho e filha, todos deixados deliberadamente sem nomes —, presenciamos a luta daquela família antes, durante e depois de passarem cerca de 4 anos em vários campos de concentração norte-americanos.

Publicado no Brasil pela Editora Grua, o romance de prosa concisa — com frases estranhamente curtas que ditam a cadência de toda a narrativa — nos informa que em uma determinada noite de dezembro a casa de uma família de japoneses em Berkeley, na Califórnia, foi invadida por membros do FBI que, sem nenhum tipo de aviso ou acusação formal, sequestraram o patriarca da família, o jogaram dentro de um carro preto e desapareceram na escuridão — um detalhe interessante se levarmos em consideração o ano de publicação do romance nos Estados Unidos (2002) e como a xenofobia gerada pelos ataques ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001 contra muçulmanos ecoa nas tragédias sofridas pela família que protagoniza o romance.

No capítulo de abertura, contado através do ponto de vista da mãe, ficamos sabendo que se passaram dois meses desde o sequestro de seu marido, e devido à Ordem Executiva de Franklin D. Roosevelt, o restante da família também é levado a um campo de concentração diferente do marido — devidamente chamado de “Centro de Realocação”, em uma tentativa de suavizar os atos do governo norte-americano contra centenas de famílias onde o conceito de “direitos humanos” era algo que simplesmente não existia. Aqui testemunhamos o dia a dia pragmático da mãe que entre uma tarefa e outra, precisa decidir o que fazer com os pertences da família que não poderão ser levados para os campos de concentração. São décadas de memórias que precisarão ser deixadas para trás, inclusive animais de estimação tão amados por todos naquela casa.

São fragmentos de uma felicidade longínqua — quase utópica, se lembrada em retrospecto — de quando a família era amada por seus vizinhos, onde a xenofobia não existia, quando as crianças de todas as raças (exceto as negras, é claro) brincavam juntas, felizes, sem nenhum tipo de preconceito. Testemunhamos também alguns “atos violentos de bondade” da mãe, principalmente uma chocante descrição de uma ação envolvendo o velho cachorro da família, curiosamente, batizado apenas de “Cachorro Branco”. É interessante notarmos a escolha da autora em não dar nomes aos personagens: ao deixar os membros da família sem nome, sem sobrenome e com apenas descrições comuns (“cabelos pretos”, “pele amarela”, “olhos puxados”), a autora universaliza aquelas personagens, fazendo com que mais pessoas de origem japonesa — isto é, as que possuem passado semelhante — possam se conectar com o romance de modo mais profundo.

O terceiro capítulo acontece dentro do trem onde a família está sendo transportada para o campo de concentração e é contado através do ponto de vista da filha do casal. Ela tem 11 anos, é comunicativa e faz amizade com qualquer pessoa que lhe empreste 1 minuto de atenção. Neste capítulo existe uma mudança interessante de foco na descrição das pessoas e dos objetos: como estamos diante de observações feitas por uma menina de 11 anos, nada mais natural do que exemplificar e detalhar mãos, acentos, maçanetas de portas, janelas e crianças menores — objetos, partes de corpos e pessoas que estão principalmente no campo de visão de uma criança. 

Um momento particularmente belo e poético envolvendo um baralho acontece quando, durante uma longa noite, a menina, entediada após brincar sozinha, começa a largar, lentamente, uma a uma, as cartas pela janela do trem. Ao olhar a última carta, ela percebe que é o Seis de Paus, uma carta que, historicamente, simboliza a vitória, o sucesso pessoal. Sem conseguir lembrar nada de especial relacionado ao Seis de Paus, a menina escreve seu nome nas costas da carta e a deixa escorregar lentamente pela mão, se perdendo assim na escuridão do deserto. É preciso reconhecer o talento da autora para criar momentos como o citado acima. Em determinado momento, por exemplo, estamos diante de uma carta enviada pelo pai das crianças, onde ele descreve estar vendo uma águia careca (símbolo do espírito da liberdade nos Estados Unidos) voar livremente pelo campo de concentração em direção às montanhas. O livro é repleto de momentos que funcionam como pequenas cutucadas à hipocrisia do país das oportunidades.

O quarto capítulo é contado através do ponto de vista do filho, um menino de 8 anos que escreve a maioria das cartas para o pai. Por se tratar da pessoa mais nova da família, suas ideias, sonhos e descrições beiram uma inocência fantasiosa, uma espera pelo mundo perfeito de antes. Mundo que como sabemos, nunca será o mesmo. Curiosamente, é justamente através de seu olhar que conhecemos o campo de concentração. Um local descrito pelo garoto de forma apropriadamente infantilizada, uma vez que tudo que ele podia fazer ali era brincar com outros garotos japoneses durante todos os dias. E o fato de que as crianças estão constantemente brincando de guerra e repetindo frases que ouvem dos algozes é importante para nos informar como até mesmo as crianças japonesas começaram a absorver o ódio dos norte-americanos, se considerando, de fato, os vilões daquela guerra.

Já o penúltimo capítulo é contado em conjunto através dos pontos de vista do filho e da filha. Nele ficamos sabendo que a família passou cerca de 4 anos no campo de concentração, recebendo míseros 25 dólares quando foram liberados. “Como refazer a vida no Pós-Guerra com 25 dólares?”, nos perguntamos em uníssono com a mãe. Este capítulo funciona basicamente como uma espécie de reapresentação, ou melhor, uma apresentação desfigurada da antiga realidade da família antes da guerra, com a mudança de que agora é a mãe que precisa trabalhar e trazer comida à mesa, bem como tentar blindar seus filhos dos olhares e de ataques de vândalos à sua casa durante a noite — aspecto que traz uma camada de suspense e apreensão, quase de terror na narrativa.

Existe uma espécie de crescendo literário neste capítulo — sentimos a intensidade da prosa aumentando aos poucos, nos preparando para o clímax no capítulo final, escrito pelo marido, e intitulado apropriadamente de “Confissão”, onde ele parece falar diretamente para nós sobre os abusos sofridos no campo de concentração. Aqui, como não poderia deixar de ser, afinal estamos diante de um homem dilacerado pela guerra, um homem que foi tirado de sua família ainda jovem, mas que retorna a sua casa velho, irreconhecível aos olhos dos filhos. Um homem antes cheio de vida, agora transformado em um fiapo de ser humano que perambula pela casa em estado catatônico, que não consegue dormir graças aos horrores sofridos pelas mãos do governo norte-americano.

Quando o Imperador era Divino é um livro que causa um estranhamento inicial devido à escolha deliberada da autora em escrever sobre o trauma familiar através de frases tão curtas, mas, passado este obstáculo, o leitor tem em sua frente um livro que apesar de não ser perfeito, prende a atenção graças sua à estrutura: sabemos que, ao menos a princípio, o pai está prestes a ser solto, mas nunca sabemos quando, ou se na verdade ele irá de fato voltar. Só nos resta enfrentar o terceiro ato da história com bravura, assim como enfrentou a autora a contar a história da mulher sem nome.

Você poderá gostar

Nenhum comentário

    Deixe um comentário