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A passabilidade branca em “A metade perdida”, de Brit Bennett

Na trama de A metade perdida (Intrínseca — com tradução de Thaís Britto) iremos acompanhar a jornada de Desirée e Stella Vignes, duas irmãs gêmeas idênticas que nasceram em uma cidade pequena dos Estados Unidos chamada Mallard, onde pessoas negras de pele escura não existem — graças a uma escolha deliberada de seus moradores. São pessoas que se consideram quase como brancas que possuem muita resistência e muita discriminação em relação a pessoas negras de pele escura — quase que uma reprodução de racismo entre pessoas negras de pele clara contra pessoas negras de pele mais escura. Paradoxalmente, quando estas pessoas negras de pele clara se relacionam com pessoas brancas, elas são tratadas como se fossem pessoas de pele escura porque para as pessoas brancas não existe essa diferenciação entre negros.

Durante a infância das irmãs acontece um evento traumático que faz com que elas queiram se mudar dessa cidade definitivamente. Stella, que é a mais estudiosa das duas, mais centrada e mais determinada, é contra a ideia de abandonar a cidade e a escola, ao contrário de Desirée, que não vê a hora de abandonar aquele lugar. Aproveitando uma festa na cidade, elas decidem finalmente colocar o plano em prática. Só adiante na narrativa é que iremos descobrir o real motivo que fez com que Stella mudasse de ideia com relação à fuga — e quando finalmente nos é explicado, é impossível julgar a decisão tomada por ela.

Após viverem juntas por cerca de um ano em outra cidade, sempre enfrentando muita dificuldade, Stella simplesmente desaparece da vida da irmã e vai viver como uma mulher branca em outra cidade. A partir deste momento, no entanto, e por grande parte da narrativa, iremos testemunhar a jornada de Desirée na busca pela irmã, e o porquê dela ter decidido se mudar sem deixar aviso. É impossível não julgar esta decisão de Stella, pelo menos a princípio, de se passar por branca — uma vez que por ser negra de pele muito clara, ela simplesmente era lida como branca. Apenas quando entendemos as motivações que a levaram a viver como mulher branca, e os benefícios que ela ganharia naquela sociedade racista dos Estados Unidos da década de 1950, é que conseguimos entender e simpatizar com a sua decisão. 

Na época em que esta parte da narrativa acontece, a segregação era uma realidade nos Estados Unidos. Pessoas brancas tinham lugares reservados em vários tipos de estabelecimentos, e esses lugares eram diferentes para as pessoas negras — que só podiam se sentar no fundo dos ônibus, tinham que beber água no bebedouro de “pessoas de cor”, etc. Então ao perceber que pode se passar por branca facilmente e desfrutar de uma vida sem dores, sem dificuldades financeiras e com reconhecimento social, Stella não pensa duas vezes. Paradoxalmente, no entanto, esses “benefícios” também são bastante dolorosos, já que ela precisou abrir mão de sua família e de sua irmã gêmea, além de viver constantemente com medo de ter seu segredo descoberto.

Stella decidiu construir uma família ao se casar com um homem branco. A preocupação, é claro, aumenta quando ela engravida de sua filha, pois se a menina nascesse negra, ela teria toda a sua vida destruída. Felizmente — para Stella, e no contexto da narrativa — não é o que acontece. Sua filha nasce branca com olhos azuis, e muito parecida com o pai.

A partir deste ponto, passamos a acompanhar a vida de Desirée — que também fugiu, mas com um homem negro retinto. Os dois se apaixonam, se casam, e da relação nasce Jude, a filha do casal, uma menina negra de pele escura como o pai. Curiosamente, ao contrário da situação de Stella. Ou seja, são duas irmãs negras de pele clara que se relacionam com homens de raças diferentes, de peles diferentes e têm as filhas parecidas com os pais. É interessante essa configuração social e racial, uma vez que podemos notar a diferença no tratamento que é dado a cada uma dessas filhas de acordo com a cor de pele que elas têm. 

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Infelizmente, o casamento de Desirée, que até então era maravilhoso, passa a ser um inferno, já que ela passa a ser constantemente espancada pelo marido. E como solução, ela decide fugir e voltar para a sua cidade natal — que como sabemos, é composta apenas de negros de pele clara. Como era de se esperar, quem sofre com essa decisão é Jude, sua filha de pele escura. Jude cresce como uma criança muito solitária, sem amigos e que não é bem aceita na cidade. 

Algo interessante é o fato da autora dar saltos constantes na linha do tempo. Então passamos a acompanhar o início da vida adulta de Jude, já na faculdade. Conhecemos seus amores e suas amizades, o que contrasta com a sua vida na pequena cidade em que vivia com a mãe e a avó quando era criança. Chegamos mesmo a nos deparar com um personagem negro e trans quando a autora passa a abordar a vida amorosa de Jude; algo que é retratado de forma positiva, sem reduzir o personagem à sua transexualidade. Existe também uma importante discussão sobre sexualidade, sobre o mundo das drag queens, e sobre colorismo, que é o nível de discriminação que uma pessoa sofre de acordo com a pigmentação de sua pele.

Ainda que eu goste de todos os temas abordados no livro, não posso me furtar de fazer algumas críticas à narrativa. A primeira delas é a quantidade de páginas. Acho que a história poderia ter sido contada em um número de páginas razoavelmente menor. Em determinados momentos a narrativa se arrasta e acaba ficando um pouco cansativa porque a gente entendeu a situação perfeitamente. E ainda que eu goste da forma como a autora constrói a narrativa — que não é apresentada de uma forma cronológica — é impossível não se perder um pouco no início. Além disso, também é repetitiva a decisão da autora de terminar um capítulo com uma revelação bombástica, apenas para começar outro capítulo focando em outro personagem. Acho que isso é bom para nos prender na narrativa porque queremos saber o que vai acontecer quando voltarmos para a história da personagem do capítulo anterior, mas como a autora usa este artifício em demasia, o efeito acaba sendo o contrário: não ficamos presos no suspense, e sim em uma repetição que diminui a nossa expectativa diante daquela história.

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