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A realidade da Serra Leoa em “O brilho do amanhã”, de Ishmael Beah

A desgraça é eterna neste romance sobre o recomeço de duas famílias em uma cidade de Serra Leoa devastada pela Guerra Civil

Após o reconhecimento mundial graças ao seu livro de memórias intitulado Muito longe de casa: Memórias de um menino soldado, de 2007, Ishmael Beah estreou na ficção com O brilho do amanhã, publicado em 2014 no Brasil pela Companhia das Letras. Na história acompanhamos dois professores, Benjamin e Bockarie, que retornam à Imperi, sua pequena cidade natal, dois anos após o fim da Guerra Civil em Serra Leoa — apenas para se depararem com o vilarejo devastado, mais parecendo um enorme cemitério a céu aberto.

Traduzida por George Schlesinger, a obra — que foi enviada pelo clube de assinaturas Pacote de Textos em abril de 2022 — é narrada em terceira pessoa e tem início de modo evocativamente trágico e bastante promissor em uma espécie de prólogo que narra lentamente o retorno e a readaptação de três personagens que chegam ao vilarejo em momentos diferentes — ao que tudo indica, em meados dos anos 2000: eles são a senhora Kadie, o senhor Moiwa e o senhor Kainesi. Este início funciona quase como uma história de terror — o que é sintomático, já que eles estão literalmente vivendo em uma cidade fantasma. No longo prólogo não oficial acompanhamos o dia a dia dos três, que consiste em repetidos, cansativos e longos esforços para reconstruir o local — literalmente um mar de ossos — na esperança de reencontrar outros moradores que eventualmente retornariam para refazer suas vidas.

Após vários meses de trabalho árduo outros moradores começaram a retornar ao lugar, que pouco a pouco começou a ganhar vida e se assemelhar aos tempos antes da guerra. As famílias, ainda apreensivas, reformaram suas casas com qualquer tipo de material disponível, as crianças brincavam, os adultos plantavam e colhiam seus próprios alimentos e um fiapo de felicidade parecia estar no horizonte. Benjamin e Bockarie trabalhavam como professores (adeptos a um sistema de educação que ao que tudo indica, é o método freireano de ensino), e ainda que com um salário longe de ser satisfatório, eles poderiam finalmente dar algum conforto a sua família e seguir suas vidas com relativa paz. A relação dos dois professores com seus alunos é, aliás, um dos melhores aspectos do romance, pois percebemos uma genuína preocupação de ambos para que os alunos realmente aprendam as disciplinas, e não apenas as decorem. Eles chegam, de fato, a dar aulas particulares de graça para que os alunos consigam boas notas.

Os problemas, no entanto, começam a surgir quando o diretor da escola passa a desviar o dinheiro que seria usado para o salário dos professores, que agora recebiam apenas a cada três meses. E a partir deste momento, infelizmente tem-se início e uma longa e maçante sub-trama (que poderia ser facilmente descartada, uma vez que não adiciona nada de importante na narrativa) que envolve o roubo de um caderno de finanças do diretor que teoricamente seria usado como chantagem. Adiante, uma mineradora e um bar são construídos no vilarejo, e com eles, chegam vários estrangeiros, muitos deles brancos, que acabam com a harmonia que os moradores tanto lutaram para conquistar, já que com a notícia do dinheiro abundante dos forasteiros também começam a chegar ao lugar várias trabalhadoras sexuais — que sofrem com a combinação da bebida alcoólica, que aliada ao machismo dos homens (locais e estrangeiros), resultam em atos de violência sexual narrados de forma gráfica.

Foto: Reprodução

Como era de se esperar, vários moradores, que agora não podiam mais cultivar e vender seus próprios alimentos, passaram a trabalhar na mineradora, que funcionava sem nenhum tipo de segurança, e após vários acidentes e mortes — de trabalhadores, crianças e mulheres, devidamente acobertados pela polícia —, Imperi, que ainda sofria com os efeitos da guerra, é novamente destruída graças ao mercúrio despejado pela mineradora nos rios. É neste cenário que Benjamin e Bockarie precisam reunir todas as suas forças para refazerem suas vidas diante de tantos obstáculos, ou mesmo ponderar se existe alguma possibilidade real de um futuro para os filhos naquele local.

Para os leitores os obstáculos são vários. Em primeiro lugar, uma fraquíssima construção dos personagens, que não possuem desenvolvimento — ou um resquício sequer de algo remotamente parecido com um arco dramático satisfatório. Ainda existem vários personagens que possuem papel importante na formação moral dos protagonistas, mas que são abandonados na história sem nenhum motivo aparente. Em segundo lugar, vários eventos são contados sem harmonia e de forma nada orgânica e desinteressante. Em terceiro, a enorme quantidade de sub-tramas que não precisariam existir — já que não levam a história adiante — também atrapalham o ritmo, a imersão e a absorção da leitura. Por último, nada se compara ao desastroso terceiro ato — escrito de forma apressada, em que no final outro personagem mal-aproveitado aparece como uma espécie de deus ex-machina.

O sentimento que fica é que Beah precisaria de no mínimo mais dois livros para desenvolver a história que ele se propôs a escrever de forma satisfatória, e ouso dizer que os únicos momentos em que algo remotamente agradável ocorre na narrativa — além da relação de Benjamin e Brockarie com os alunos — são relacionados a Coronel, um sujeito que faz justiça com as próprias mãos para proteger os habitantes daquele lugar abandonado pelo governo e pelas autoridades. De qualquer forma, Beah também abandona qualquer possibilidade de transformar o sujeito em um personagem memorável ao escrevê-lo de forma irregular.

O brilho do amanhã é um livro brutal e violento baseado — ou inspirado — em eventos reais realmente importantes, mas que perdem sua força por terem sido escritos sem foco, talvez necessitando de mais lapidação, pois com certeza existia a chance de encontrarmos uma boa história dentro daquela contada pelo autor — que mais parece a primeira ou segunda versão de um rascunho com bastante potencial.

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