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Dois poemas de Luiz Gama que exaltam a mulher negra

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu no dia 26 de junho de 1830, na Bahia e faleceu em 24 de setembro de 1882, em São Paulo. Filho de mãe africana livre, Luiza Mahin, e pai português, aos dez anos foi vendido pelo próprio pai para ser escravizado e viveu privado de liberdade por oito anos, até que aprendeu a ler e conseguiu liberdade para si mesmo ao provar que havia nascido livre. 
Exerceu os ofícios de jurista, advogado e jornalista. Publicou seu primeiro e único livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino em 1859, com uma segunda edição em 1861.
Foi casado com uma mulher negra, Claudina Fortunato Sampaio e pai de um filho, Benedito Graco Pinto da Gama. De acordo com a pesquisadora Ligia Fonseca Ferreira, é da autoria de Luiz Gama os primeiros poemas dedicados à mulher negra na literatura brasileira. Dois exemplos disso são os poemas “A cativa”, que está presente nas duas edições de seu livro e “Meus amores”, que foi publicado no semanário Diabo Coxo, em 1865. 

Abaixo, a transcrição dos dois poemas.

A  CATIVA

Uma graça viva

Nos olhos lhe mora,

Para ser senhora

De quem é cativa.

Camões

1 Como era linda, meu Deus !

Não tinha da neve a cor,

Mas no moreno semblante

Brilhavam raios de amor.

2 Ledo o rosto, o mais formoso,

De trigueira coralina,

De Anjo a boca, os lábios breves

Cor de pálida cravina.

3 Em carmim rubro engastados

Tinha os dentes cristalinos ;

Doce a voz, qual nunca ouviram

Dúlios bardos matutinos.

4 Seus ingênuos pensamentos

São de amor juras constantes ;

Entre as nuvens das pestanas

Tinha dois astros brilhantes.

5 As madeixas crespas negras

Sobre o seio lhe pendiam,

Onde os castos pomos de ouro

Amorosos se escondiam.

   6 Tinha o colo acetinado

— Era o corpo uma pintura —

E no peito palpitante

Um sacrário de ternura.

7 Límpida alma — flor singela

Pelas brisas embalada,

Ao dormir d’alvas estrelas,

Ao nascer da madrugada.

8 Quis beijar-lhe as mãos divinas,

Afastou-m’as — não consente ;

A seus pés de rojo pus-me,

— Tanto pode o amor ardente !

9 Não te afastes lhe suplico,

És do meu peito rainha ;

Não te afastes, n’este peito

Tens um trono, mulatinha !…

10 Vi-lhe as pálpebras tremerem,

Como treme a flor louçã,

Embalando as níveas gotas

Dos orvalhos da manhã.

11 Qual na rama enlanguescida[,]

Pudibunda[,] sensitiva,

Suspirando ela murmura :

Ai, senhor, eu sou cativa !…

12 Deu-me as costas, foi-se embora[,]

Qual da tarde ao arrebol[,]

Foge a sombra de uma nuvem[,]

Ao cair a luz do sol.


*    *     *

 MEUS AMORES 

Pretidão de amor,
Tão leda figura
Que a neve lhe jura,

Que mudara a cor.

Camões — Endechas 

1 Meus amores são lindos, cor da noite

Recamada de estrelas rutilantes ;

Tão formosa crioula, ou Tétis negra,

Tem por olhos dois astros cintilantes.

2 Em rubentes granadas embutidas

Tem por dentes as pérolas mimosas,

Gotas de orvalho que o inverno gela

Nas breves pétalas de carmínea rosa.

3 Os braços torneados que alucinam,

Quando os move perluxa com langor.

A boca é roxo lírio abrindo a medo,

Dos lábios se distila o grato olor.

4 O colo de veludo Vênus bela

Trocara pelo seu, de inveja morta ;

Da cintura nos quebros há luxúria

Que a filha de Cineras não suporta.

5 A cabeça envolvida em núbia trunfa,

Os seios são dois globos a saltar ;

A voz traduz lascívia que arrebata,

– É coisa de sentir, não de contar.

6 Quando a brisa veloz, por entre anáguas

Espaneja as cambraias escondidas,

Deixando ver aos olhos cobiçosos

As lisas pernas de ébano luzidas.

7 Santo embora, o mortal que a encontra pára,

Da cabeça lhe foge o bento siso ;

Nervosa comoção as bragas rompe-lhe,

E fica como Adão no Paraíso.

8 Meus amores são lindos, cor de noite,

Recamada de estrelas rutilantes ;

Tão formosa creoula, ou Tétis negra,

Tem por olhos dois astros cintilantes.

9 Ao ver no chão tocar seus dois pés mimosos,

Calçando de cetim alvas chinelas,

Quisera ser a terra em que ela pisa,

Torná-las em colher, comer com elas.

10 São minguados os séculos para amá-la,

De gigante a estrutura não bastara,

De Marte o coração, alma de Jove,

Que um seu lascivo olhar tudo prostrara.

11 Se a sorte caprichosa em vento, ao menos,

Me quisesse tornar, depois de morto ;

Em bojuda fragata o corpo dela,

As saias em velame, a tumba em porto,

12 Como os Euros, zunindo dentre os mastros,

Eu quisera açoitar-lhe o pavilhão ;

O velacho bolsar, bramir na proa,

Pela popa rojar, feito em tufão.

.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .

13 Dar cultos à beleza, amor aos peitos,

Sem vida que transponha a eternidade,

Bem que mostra que a sandice estava em voga

Quando Uranus gerou a humanidade.

14 Mas já que o fato iníquo não consente,

Que o amor, além da campa, faça vaza,

Ornemos de Cupido as santas aras,

Tu feita em fogareiro, eu feito em brasa.

Getulino

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