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Gênero Literatura negra Mulher negra Negritude Raça

O círculo vicioso de abandono em A Autobiografia da Minha Mãe

Escrito por Jamaica Kincaid de forma feroz e corrosiva, e em apenas 144 páginas, A Autobiografia da Minha Mãe, lançado em outubro pela Companhia das Letras, com tradução de Débora Landsberg, aborda de forma crua, direta e gráfica os traumas da protagonista Xuela Claudette Richardson. A autora escreve sobre a morte, sobre o nascimento, sobre o abandono paterno, e por último, mas não menos importante, a eterna procura de Xuela por alguma forma de amor verdadeiro, muitas vezes de forma não saudável e até criminosa. Uma busca por um perdão inalcançável, visto que o fato de que sua mãe morreu durante o seu nascimento também ocupa a mente da protagonista, e a escolha da autora em começar o livro já deixando claro que a mãe da protagonista faleceu enquanto dava a luz cria um clima sufocante e inerente de dores: a da protagonista, que passará a vida inteira tentando lidar com a culpa pela morte da mãe, e as nossas dores, enquanto seguramos as lágrimas que reagem ao choque criado de forma brilhante pela autora, página após página.

Imediatamente após o falecimento da esposa, Alfredo saiu com a recém nascida nos braços e a entregou para Eunice, a mulher responsável por lavar suas roupas, e com essa ação ele deixa evidente o seu desprezo pela menina, tratando-a como um ser estranho até o fim de sua vida. Xuela relembra esses dias com tristeza ao dizer que a atitude do pai falava muito sobre ele, um homem muito vaidoso, que sempre usava roupas impecavelmente bem passadas, e que ao entregá-la aos cuidados de quem era responsável pela sua roupa, ele simplesmente considera a filha como uma trouxa de sujeira que precisa ser limpa. Curiosamente ao fazer isso, fica subentendido que o pai realmente imagina estar praticando uma boa ação, visto que na sua mente, ao abandonar a filha com a responsável em deixá-lo apresentável aos olhos dos moradores da cidade em que trabalhava como carcereiro, na verdade estaria ajudando a filha a tornar-se uma pessoa idolatrada por todos no futuro. 

A cada duas semanas, Alfredo visitava Eunice para pegar suas roupas, mas nunca trocava nenhuma palavra com a filha, e ali a autora começa a dar indícios dos temas recorrentes da história: a brutalidade e o desprezo como forma de herança. É preciso louvar o empenho da autora ao falar sobre roupas e cores em geral, como por exemplo, ao descrever a pintura da casa de um dos personagens com um detalhismo impressionante, chegando quase a nos fazer sentir o cheiro fresco da tinta evaporando através das páginas dos livros, ou da tela do Kindle, no meu caso. Outro detalhe que chama a atenção no romance é a consistência da autora em fazer Xuela descrever partes do seu corpo com o mesmo detalhismo, mas que também funciona como um medidor de sua própria solidão, uma vez que devido aos contínuos atos de abandono em sua vida, nada mais lhe restou a não ser decorar detalhes do seu corpo. 

Foto: Fredrik Sandberg. Fonte: Revista Cult

Kincaid demonstra uma mão calibrada ao escrever sobre sexo e masturbação: a protagonista está constantemente se acariciando em locais públicos como se ninguém estivesse a sua volta, e quando ela se dá conta de que alguns homens a notaram, ela faz questão de não parar o que estava fazendo. Não dá para entender essas passagens como uma crítica da autora ao modo como a sociedade trata as meninas. Alguns podem entender que a menina, ao provocar os homens esteja na verdade flertando com eles, mas prefiro entender esses momentos como uma crítica afiada à normalização da ideia errada que homens costumam acreditar para que seus desejos sejam considerados normais dentro de sua mente doentia. Xuela não flerta porque está de fato interessada nos homens, mas porque foi condicionada a acreditar que é saudável ter um relacionamento com um homem mais velho, graças à sociedade que insiste em erotizar meninas de forma cada vez mais precoce. Kincaid escreve essas passagens de forma bela, crua, e às vezes quase beirando a linha tênue do fetichismo, porém poucas vezes me deparei com trechos narrando relações sexuais tão belos e tão assustadores. 

No entanto, a partir do final de sua segunda metade o romance acaba sendo vítima de sua própria perfeição: desde a primeira página a autora se dedica veementemente a escrever uma literatura do mais alto nível; a cada linha, e a cada página ficamos com uma falta de fôlego tamanha a voracidade da escrita de Kincaid, que escreve de forma ligeira, com muitas vírgulas e poucos pontos finais, porém, como acontece em certos filmes de ação em que o diretor cria uma sequência de ação mais mirabolante do que a outra, chega um determinado momento em que fica impossível atingir a perfeição da cena anterior. E é isso o que acaba acontecendo nos últimos capítulos. A impressão que fica é que a autora perdeu o fôlego, e que o único caminho foi uma inevitável calmaria que para alguns pode ser considerada como um ponto negativo, mas que combina com o arco dramático da protagonista, que presenciou a morte desde o primeiro respiro, e que após a morte de todos os seus parentes, e do marido, encontra-se velha e sozinha.

A Autobiografia da Minha Mãe é um romance espetacular e perturbador que lida com abandono, falta de amor paterno e materno, sexualidade e a solidão da mulher negra, mas que contém partes pesadíssimas que podem causar gatilhos em certos leitores. O foco principal da história é um círculo vicioso de personagens sedentos por amor e que por causa desse desespero em ser amado, acabam em relacionamentos sem amor, e dentro desses relacionamentos sem amor geram filhos que crescerão também em sua própria busca por afeto e pertencimento.


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