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Cinema

Adaptação poderosa e minimalista da peça de Shakespeare “A Tragédia de Macbeth”


Título original: The Tragedy of Macbeth. Ano: 2021.
Direção e Roteiro: Joel Coen. Elenco: Denzel Washington, Frances McDormand, Corey Hawkins, Harry Melling, Moses Ingram, Kathryn Hunter e Brendan Gleeson. 
Nota: ★★★★☆

Nesta clássica tragédia escrita por William Shakespeare, e adaptada para o cinema por Joel Coen, um general escossês (Macbeth, interpretado de forma poderosa por Denzel Washington), recebe uma profecia de três bruxas, o avisando de que em breve ele seria condecorado como Rei da Escócia. Consumido pela ambição e pressionado por sua esposa (Lady Macbeth, interpretada por Frances McDormand), que o acusa de ser fraco e hesitante, Macbeth assassina o Rei Duncan (interpretado por Brendan Gleeson) e assume o seu trono — ato que dá início a um banho de sangue pautado pela ambição. 

A pergunta que pode vir à cabeça do telespectador aficionado por adaptações das peças de Shakespeare é a seguinte: teríamos algo realmente novo e relevante que já não tivesse sido abordado nesta peça de teatro escrita no século 17 — e que conta com dezenas de adaptações para o cinema e para a TV desde que foi adaptada pela primeira vez para o cinema em 1908? De acordo com o diretor Joel Coen, sim, ele teria algo a acrescentar que já não tenha sido feito por Justin Kurzel — que dirigiu uma linda, porém fraca adaptação em 2015 —; por Roman Polanski em 1971 — naquela que se tornaria minha adaptação preferida de Macbeth —; ou por Orson Welles, em sua evocativa adaptação em 1948 (para citar apenas algumas versões da peça).

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Segundo Coen, sua intenção era transformar a peça de Shakespeare em um filme que transmitisse ao telespectador o sentimento de estar assistindo a uma peça de teatro. Bem, o objetivo foi claramente alcançado. Mas não apenas isto; fotografado em um preto e branco surreal, fantasmagórico (que nos remete a filmes da década de 30 e 40 de diretores como Georg Wilhelm Pabst e Carl Theodor Dreyer), e repleto de sombras fortes causadas pelas paredes de castelos imponentes pelo diretor de fotografia Bruno Delbonnel — responsável pela fotografia de uma das minhas adaptações preferidas de Fausto, dirigida por Alexandre Sokurov em 2011 —, o filme já começa com um soberbo plano plongée (quando uma câmera alta está virada para baixo), que ao filmar alguns pássaros voando, faz o telespectador pensar se tratar, na verdade, de um plano contra-plongée (quando uma câmera baixa está virada para cima), nos mostrando pegadas ensanguentadas na neve.

Já que estou falando de aspectos técnicos da produção, é impossível não citar o magnífico trabalho da equipe responsável pelo design de produção — não é à toa que a produção está concorrendo, além de Melhor Ator, em categorias como Melhor Fotografia e Melhor Design de Produção no Oscar de 2022 —, que transformou os galpões usados nas locações em ambientes neblinosos, assustadores, frios e repletos de contraste. As composições cuidadosamente pensadas pelo diretor — que decidiu fotografar o filme em aspect ratio 11:8 (formato de tela quadrado usado principalmente até a década de 40) — transformam a maioria das cenas em quadros perfeitos, apenas esperando uma moldura para serem pendurados em uma parede. Já os efeitos usados nas transições entre uma cena e outra merecem aplausos pelo modo poético que são efetuados, dando uma ideia de continuidade e fluidez às próximas cenas — como por exemplo, quando o diretor corta gradativamente de uma fumaça causada por um incêndio para uma neblina na floresta —,  já que o uso de fade outs (tela toda preta) é quase inexistente.

Atuações

Apesar de não ser novo em adaptações de peças de Shakespeare, tendo atuado na comédia Muito Barulho por Nada, dirigida por Kenneth Branagh em 1993, é a primeira vez que Denzel Washington protagoniza uma produção baseada em uma peça do Bardo. O ator veterano e vencedor de duas estatuetas do Oscar (Melhor Ator Coadjuvante pelo filme Tempo de Glória, de 1989; e Melhor Ator em Dia de Treinamento, de 2001) brilha ao interpretar o primeiro Macbeth negro dos cinemas como um homem de meia idade, que apesar de ser determinado, possui dúvidas acerca de suas ações, e graças aos close-ups do diretor de fotografia, em conjunto com o formato de tela, criam cenas que praticamente nos jogam dentro daquele rosto que parece uma obra de arte. Já McDormand nos entrega, como não poderia deixar de ser, uma Lady Macbeth manipuladora, mas que fica sem muita coisa para fazer, uma vez que após ter obrigado o marido a cometer os assassinatos, ela fica apenas perambulando pelas locações. 

Representatividade

Ainda que Denzel Washington tenha pedido para olharmos além da raça de Macbeth, é importante salientar a importância de ter um elenco diverso em uma adaptação de Shakespeare (além do ator, no elenco ainda estão Corey Hawkins, de Straight Outta Compton – A História do N.W.A. e Moses Ingram, de O Gambito da Rainha como Macduff e Lady Macduff, respectivamente; e Sean Patrick Thomas, de Uma turma do Barulho). Oras, como não dar a devida atenção à raça dos personagens negros? Historicamente, as adaptações cinematográficas de peças de Shakespeare são homogeneamente brancas, e as exceções acontecem quando a adaptação é baseada em Otelo — ainda que em tempos passados, o papel do Mouro fosse interpretado por atores usando blackface —, portanto, o fato de grandes atores negros estarem presentes em papéis importantes nestas novas adaptações cinematográficas faz com que mais pessoas negras possam se conectar com a obra de Shakespeare. Como disse a atriz Moses Ingram em entrevista sobre a diversidade presente no filme: “Eu lembro de sentir que Shakespeare não era para mim, para alguém que se parecia comigo.” Curiosamente, com mais de 30 anos de carreira, essa é primeira vez que o diretor Joel Coen trabalha com atores negros. É a primeira vez, também, que ele dirige um filme sozinho, sem a companhia do irmão Ethan Coen.

A Tragédia de Macbeth pode não ser a obra-prima que os fãs de Shakespeare esperavam — e nem precisa ser, na verdade —, mas os simples aspectos técnicos da produção minimalista, aliados às atuações, à belíssima fotografia e à trilha sonora de Carter Burwell fazem com que o filme seja merecedor de todos os prêmios que está concorrendo.


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