Deus há de ser mulher (e uma de suas personificações chama-se Elza Soares)

Elza Soares

É extremamente poderoso, importante e emblemático que um dos maiores nomes — se não o maior — da música brasileira em atividade em 2018 seja uma mulher negra de 81 anos. E isso em um país onde o racismo e o machismo são opressões estruturais é coisa pra caramba. Com uma voz que evoca força e ancestralidade, Elza Soares é uma manifestação visceral da natureza.
Em 2015, tal como uma fênix, Elza ressurge e arrebata, não só o Brasil, como o mundo, com o avassalador “A Mulher do Fim do Mundo”, o primeiro álbum de inéditas de toda a sua carreira. Idealizado para ser um disco de regravações de samba, o projeto ganhou outros contornos e tomou a forma cuja qual conhecemos. Como a própria cantora diz, esse é um disco sobre negritude, sexo e tudo aquilo que é proibido e ela gosta de falar. Com esse discurso, Elza toma para si toda a atenção que merece. Aclamado, o álbum apareceu no New York Times e Pitchfork, assim como foi eleito o disco do ano de listas como as dos portais Tenho Mais Discos Que Amigos e Rolling Stone.

 
Nada mais natural e bonito do que a mulher do fim do mundo, aquela que canta suas dores e vivências, se transforme em Deus. Ou melhor, que ela assuma a todos ser uma das personificações de Deus. Três anos após movimentar todas as estruturas da sociedade que a cerca, Elza nos dá mais uma vez o privilégio de sua benção e nos presenteia com “Deus é Mulher”.
Contando mais uma vez com a produção de Guilherme Kastrup, nossa deusa retoma as parcerias que deram vida ao seu disco anterior. Alice Coutinho, Kiko Dinucci, Romulo Fróes, dentre outros, mais uma vez colaboraram para que Elza continuasse a escrever a sua história.
Sem medo dos próprios sentimentos, essa rainha da nossa música faz de “Deus é Mulher” — que já é por si só um disco pesado, esteticamente falando — um grito vigoroso de luta, resistência e empoderamento. A impressão que eu tenho ao ouvir o disco é que ela sabe exatamente quem é, a posição que tem, o que é seu por direito e não tem problema algum em admitir isso. Admirada por gente de todo canto do mundo — Lianne La Havas, uma das cantoras inglesas mais prestigiadas da nova geração já demonstrou publicamente sua admiração por ela –, Elza segue sendo relevante, não só para a música, mas para a vida.
Com uma história incrível, é impressionante que após tanta estrada, Elza Soares ainda tenha energia de sobra para continuar andando em frente. Sem se intimidar, ela mantém a cabeça erguida. E nos ensina só por existir. E nos mostra que existir é resistir. E que resistir é necessário. Somos nós que te pedimos, Elza: não deixe de cantar até o fim.
 

2 respostas

  1. No final de Deus há de Ser Elza diz "Deus é mãe (Deus é mãe, Deus é mãe, Deus é mãe, Deus é mãe)" e isso ficou na minha cabeça de um jeito muito poderoso porque também fala de um retorno ao pensamento africano e de sua filosofia, que é matrigestora. A mulher gestando força e sendo potência que mobiliza o espaço onde está.

  2. Pô, sempre que eu ouço esses dois álbuns da Elza eu me arrepio todo com muitas passagens. A voz dela tem uma força absurda, né? E isso é só um reflexo da mulher que ela é.

    Sobre a filosofia e o pensamento africano, mais cedo ou mais tarde eu vou estudá-los com calma. É de grande interesse meu. Até mesmo porque a gente tem que descolonizar o pensamento, não é mesmo? Há um frase do Criolo que conversa muito comigo: "meu lado África, aflorar, me redimir". Acho que ela traduz muito bem o que eu sinto.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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