En Tu Mira – uma música de Baco Exu do Blues

Capa do cd

Cobrança – talvez esta seja a palavra que defina bem todas as nossas frustrações na vida! Somos cobrados por existir. Existir é de uma responsabilidade imensa a um ser humano, ainda mais por não virmos ao mundo com um manual de como viver. Assim, aprendemos necessariamente por erros e acertos, cujo sucesso nas escolhas não é garantido.

A única coisa que temos como garantia nesta existência é que muitas cobranças virão, e não importa qual modo de vida venhamos a escolher – se é que exista algum tipo de escolha na vida, pois não é pouco os casos em que muitas pessoas rumam por um modo de vida desastroso porque não tiveram muitas opções e ficaram no dilema entre a vida (mesmo que curta na mendicância) e a morte (mesmo que dolorosa no mundo do crime e das drogas ou da prostituição).


A meu ver, a letra da música “En Tu Mira” do artista e rapper, Baco Exu do Blues, trata da responsa de viver, não importando tanto o modo de vida que levamos. Esta música tem uma estrutura muito interessante, que lembra nossas vozes internas, que desejo definir aqui como as vozes sociais que criam a nossa subjetividade, ou nosso “eu”, isto é, nossa forma de pensar o mundo e a vida.
A primeira frase da música começa com uma pergunta – uma cobrança. É como uma voz que ecoa na nossa cabeça e não para enquanto não tomarmos uma decisão, uma atitude que aquiete essa voz, essa cobrança. A primeira voz nos lembra a cobrança do trabalho que realizamos. E como em qualquer trabalho, o que mais se exige é a produtividade – maior quantidade, e se possível, qualidade, no menor tempo – nosso sentimento de frustração aumenta porque cada um sabe o quanto se esforça para realizar aquilo que está em seu poder ou condição de fazer algo.

A segunda voz é o eco das cobranças familiares que martelam na mente. Imagine o quanto é difícil para um pai ou uma mãe ter que garantir o sustento de seus entes numa sociedade fixamente desigual; cujo salário é horrivelmente baixo, injusto, e que nunca acompanha e nem vai acompanhar a inflação; em que os direitos trabalhistas não são respeitados, nem se tem garantia de uma mínima estabilidade trabalhista, ou seja, em que a rotatividade trabalhista é gritante. Assim, é muito compreensível o desespero de ter que garantir o sustento no lar. E aqui não importa o quanto amamos alguém – a fome e o desespero de ter que sustentar nosso lar fala mais alto do que o Amor. Ou, como ouvia de um parente “Amor não enche barriga de ninguém”. Não é à toa que a quantidade de traições e divórcios, não somente em nosso país, mas em vários outros, tenham como um dos motivos a questão financeira.

Por isso, é mais que natural nos cobrarmos além da medida. “Por que eu ainda canto?” soa como “Qual é o sentido disso tudo que faço?” As responsas da vida levam muitas pessoas a viverem enclausuradas, isoladas da família e amigos, em alguns casos para que consigam viver “pouco como um rei”[1]. Agora, se essas questões existenciais são tão dramáticas para trabalhadores urbanos em geral, imagine para aqueles que trabalham com a arte, mais especificamente, para aqueles que cantam. Creio ser muito mais difícil e explico o porquê.

Pessoas que dependem da fama, do público, etc., para garantir seu sustento e manter seu modo de vida, vivem com mais exigências e cobranças do que nós consumidores. Pois, essas pessoas precisam a todo momento ficar atentas com o que falam, com o que fazem, em onde estão, em quem votam, que roupa vestem, etc. Precisam produzir muito e agradar seu público consumidor, caso não queiram perder a glória.
E sabemos que lidar com a glória, a fama, não é fácil. Em certa medida é como estar numa posição divina, pois sua imagem, palavras e gestos estarão sempre sendo divulgadas e propagadas, alcançando milhares ou milhões de pessoas devotas. Qualquer deslize, qualquer motivo que cause tristeza aos fãs, e a fama despenca; a glória, de benção, se torna uma maldição. Não é à toa que muitos artistas vão buscar nas drogas, ou outros vícios, um refúgio ou acalento.

O acúmulo de cobranças e exigências, as expectativas que as outras pessoas nos impõem, geralmente nos levam à uma flutuação de ânimo da qual não sabemos lidar. Ficamos tristes, com raiva, nos sentimos frustrados, fracos, etc. Em meio a tudo isso buscamos por solução – e onde encontrá-la, se viver já é um problema em meio a tantas exigências e cobranças? A solução que muitos encontram quando se sentem só no mundo, mesmo rodeado de amigos e familiares, é o suicídio[2]– palavra e tema tabu em nossa sociedade.

Essa música de fato é um “pedido de socorro”, diria um grito de socorro, um grito para que os fãs olhem para si mesmos, para a vida que vivem, para a sociedade da qual fazem parte, ao invés de só procurarem o próprio gozo. É um alerta ao público, aos consumidores, à nossa sociedade para que reflitam no que aplaudem.

2 respostas

  1. Ainda não ouvi essa música do Baco mas sua resenha me fez pensar, principalmente depois de ter assistido a reprise de algumas escolas de samba daqui do Rio que se propuseram a fazer do desfile um manifesto político… É bom ver que a música vem aparecendo como um meio de denunciar e fazer refletir, além de causar aquele desconforto necessário pra que a gente (re)pense nossas posturas.

    Aline

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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