Entre a resignação e a busca por uma saída: uma leitura de “Luxúria”, de Raven Leilani

Uma coisa que se pode observar com certa frequência acerca das subjetividades dos sujeitos negros é que para além dos já tão costumeiros estereótipos que inundam as representações, há certa carência por outras possibilidades de existência que, mais do que dar conta, transcedam qualquer expectativa ou achismo em torno do que é ser sem arramas. Inclusive, ser imperfeito, mergulhado em inseguranças, fraquezas, defeitos etc e etc. E a disposição de se enveredar por esse caminho talvez seja o aspecto mais marcante de Luxúria (Companhia das Letras, tradução de Ana Guadalupe), romance de estreia de Raven Leilani.

Edie, uma jovem negra de apenas 23 anos, é a personagem central de Luxúria. Dependente de um emprego numa editora que não a leva a lugar nenhum – e que a todo instante parece a ponto de ruir –, dona de um intestino imprevisível e rebelde por conta da síndrome do intestino irritável com a qual convive e perdida em um mar de incertezas que se mostra cada vez maior conforme a vida vai acontecendo, ela encontra na resignação uma maneira de lidar com seus dilemas. Talvez a sua única válvula de escape seja a pintura, ainda que a sua relação com essa atividade seja envolta de sentimentos vacilantes. Edie não é virtuosa, não possui em si os traços de heroísmo tão comuns a alguém que enfrenta tudo e todos pelo topo ou pela redenção. Ela é apenas humana. Uma pessoa tentando encontrar meios de tocar os dias. É como ela mesma diz em uma passagem do romance: “com meio grau de diferença, eu poderia ter tudo o que eu quero. Sou boa, mas não boa o bastante, e isso é pior do que ser ruim. É quase”. E tudo se torna mais intrincado ao percebermos que a personagem entende que as questões raciais, de gênero e de classe são componentes imprescindíveis para que tantos obstáculos estejam dispostos diante de si, mas que ainda assim não há conforto nessa compreensão.

A escolha e, sobretudo, a forma como Leilani compõe Edie é admirável. Nas palavras de Zadie Smith, é “uma coisa brava”, pois Leilani descreve a vida “a partir de dentro, ignorando os aspectos pré-embalados proporcionados pela cultura (a ‘mulher negra forte’, ‘a heroína que triunfa sobre/é derrotada pela opressão’)”. Também para Smith Edie é humana. Segundo ela, isso se dá pela ousadia de Leilani em fazer de Edie “uma jovem mulher negra frequentemente em dúvida, envergonhada, e insegura, alguém que é passional e perversa, gentil e vingativa, deprimida e alegre”. Todavia, a ousadia que Smith atribui a Leilani não se encerra na construção de sua protagonista. Ela permeia todo o romance. Leilani é uma escritora destemida e visceral tanto no que diz respeito ao seu trabalho com a linguagem quanto nas escolhas que faz para a narrativa de Luxúria. E no que se refere a este último ponto, as coisas são bastante claras.

Imagem: Divulgação

Para além de toda a profundidade na criação de Edie, temos no romance uma trama complexa e que por vezes desafia o bom senso. Primeiro, falemos da vida sexual da personagem. Edie é bem resolvida. Ela não se furta de viver as mais variadas experiências. Como também se permite aos desejos. Segundo Leilani, “ainda é tabu manifestar uma sexualidade feminina que não seja limpinha ou para além da compreensão tradicional de como uma pessoa marginalizada pode interagir com seu próprio sexo. Só queria que ela fosse uma pessoa livre.” E é isso que ela faz de Edie. Uma pessoa sexualmente livre. E talvez por isso ela se permita se envolver com Eric, um homem branco que tem o dobro da sua idade e ainda por cima, um casamento aberto. A relação deles desanda de tal maneira que, contra qualquer prognóstico, Edie passa a morar na casa dele. A convite de Rebecca, sua esposa, que também é branca, e sabe do envolvimento dos dois. Não tarda muito para entendermos o que de fato motivou esse movimento da companheira de Eric: o casal tem uma filha adotiva de 12 anos, a Akila, que assim como Edie, é negra. Percebemos então que a falta de traquejo no trato desses pais para com a sua filha faz com que Edie se torne uma espécie de esperança para Rebecca de que ela consiga, de alguma maneira, ajudar a sua filha a sentir-se menos deslocada. Algo nada ortodoxo e sem dúvida alguma, desconfortável.

Apesar de todo o absurdo que aparece ao longo da história, em nenhum momento a famigerada verossimilhança deixa de se fazer presente. Estranhamos toda a situação, mas acreditamos nela. Em vez de contestar, a gente se pergunta onde foi que Edie se meteu e queremos chamá-la para perto de nós e, com isso, poder lhe dar um abraço apertado. Embora ela procure não demonstrar, sua vida está uma bagunça. E é muito difícil não desmoronar com tanta coisa acontecendo. Contudo, é justo neste momento de sua vida que ela consegue se dedicar com mais afinco à arte. Parte do seu tempo é direcionado à pintura. E assim como quando ela percorre tanto a cidade de Nova York quanto o subúrbio de Nova Jersey – onde Akila, Eric e Rebecca vivem –, estes momentos de imersão no seu fazer artístico é um subterfúgio interessante que Leilani usa para dar vazão às reflexões de Edie, e, com isso, nos permitir ter contato não só com suas inquietudes, mas também com a perspectiva que a jovem tem do mundo, das coisas e de si.

Luxúria é um romance no qual a brutalidade que há no existir aparece tanto nas esquinas da narrativa como nas belíssimas frases que não raro nos aguardam pelas páginas adentro. Entre a já mencionada resignação e a vontade de encontrar uma saída que a leve para longe desse quarto sujo e desorganizado que se tornou a sua vida, acompanhamos Edie nesse seu percurso que ora é dolorido, ora é estranhamente engraçado. E isso só é possível porque Raven Leilani é uma escritora corajosa e não se priva de fazer as escolhas necessárias para que seu romance funcione. Sem contar que a autora consegue lançar luz para questões de nosso tempo com bastante desenvoltura. Para além de um olhar crítico, há um quê de ironia, de deboche, o que funciona muito bem com o clima que ela cria no romance. Luxúria é, portanto, o trabalho de uma escritora que parece entender que as possibilidades para a vida, por mais inusitadas que essas sejam, são possíveis. E o mesmo vale para seus personagens: não há nada nem ninguém que possa garantir – ou até mesmo tenha autoridade para dizer – que alguém possa ou não agir dessa ou daquela maneira. Tendo isto em vista, Leilane faz de Luxúria um belo lembrete de que a vida não é só esse grande desconhecido aberto a toda sorte de imprevisibilidade como ela também não faz promessa alguma de que será fácil. Na verdade, é bem capaz de que não seja.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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