“Sobre-viventes!”: Cidinha da Silva e os meandros do cotidiano

Sobre-viventes!, volume de crônicas publicado por Cidinha da Silva em 2016, ganhou nova edição pela Pallas em 2021. Desta vez, alguns textos abriram espaço para onze novas crônicas, sendo essas listadas em uma nota à segunda edição, logo no começo do livro. São textos com temas e discussões mais recentes, o que colabora para o vigor da obra, fazendo de Sobre-viventes! uma coleção bastante atual.

Cidinha da Silva é arguta, todo mundo sabe. Atenta aos meandros do cotidiano, faz da sua escrita um excelente registro documental do contemporâneo. Tudo aquilo que capta a sua atenção, seja por bons ou maus motivos, vira palavra em sua mão. E graças ao seu interesse genuíno por tudo aquilo que movimenta a vida, Sobre-viventes! acaba por ser um agrupamento de assuntos bem diversos, o que contribui bastante para que a sua leitura passe longe de ser cansativa. Mas é bom salientar que embora haja uma variedade de temas, o olhar sobre eles é de uma mesma pessoa, cujos repertório e perspectiva bem específicos orientam o jogo.

É bastante interessante notar como Cidinha consegue tirar um bom caldo das situações mais corriqueiras. A impressão que se tem é que ela, como todos que têm a escrita como ofício, percebe os bons argumentos que a vida dispõe diante de todos, porém, como apenas alguns – os mais espertos –, de fato dedica seu tempo a eles. Graças a isso que crônicas como “É só alegria!”, na qual a autora compartilha com nós, leitores, uma experiência nada surpreendente em um táxi no Rio de Janeiro, e “Um caso de amor entre vela e pólvora”, em que um motorista e um cobrador meio embriagado exercitavam suas habilidades no campo da retórica, tentando um dobrar o outro na base dos seus argumentos, fazendo com que a cronista, diante daquele embate, tivesse um momento de epifania e lamentasse não poder fazer justiça aos dois.

Contudo, talvez a maior força desta nova edição de Sobre-viventes! esteja justamente nos textos mais recentes que agora fazem parte do livro. Neles, Cidinha da Silva aborda assuntos pertinentes e que ainda carecem de bons tratos como aqueles que a autora os dá. A manha que ela tem de torcer esses temas até expor o nervo que ali latejam é algo único. Ela é reta, direta, sem rodeios. Com isto, crônicas como “A ação de marketing de Felipe Neto na Bienal do Rio” e “Setecentos motivos para desejar que o filme de Taís Araújo sobre a doutora Joana D’Arc Félix aconteça”, com seus títulos que já denunciam os temas nelas abordados, ganham contornos e flexões originais, frutos de uma leitura crítica e nada amedrontada que a autora faz de tais episódios. O tipo de coisa que colabora e muito para o debate público.

Ainda nessa leva dos textos mais recentes do livro, encontramos algumas preciosidades do extenso repertório de Cidinha da Silva. É o caso de “Ana Paula Maia vende livros porque é negra, ou nos lembramos de que ela é negra como justificativa às vendas marcantes? A propósito, ser escritora negra é sinônimo de venda de livros no mercado brasileiro?”, cujo longo título mais uma vez não nos deixa dúvida sobre do que se trata a crônica. Mas assim como nos outros exemplos, nos dá o argumento, mas não a forma. E a reflexão proposta pela autora aqui é cirúrgica. Ela aproveita a “deixa” do escritor Santiago Nazarian, que ao escrever para a Folha de São Paulo, comenta que um dos motivos possíveis para as boas vendas de um dos livros de Maia se dê pelo fato dele “carregar uma bandeira involuntária, por ter sido escrito por uma mulher negra”. Cidinha da Silva comenta este episódio apontando a “nova realidade do mercado livreiro, que instou (ou obrigou) as livrarias grandes e médias a criarem uma microsseção dedicada às escritoras negras” e a respeito de como a própria Ana Paula Maia não fica marcando a sua negritude, algo que, a seu ver, não influencia em nada a recepção de sua obra. Como Cidinha diz, não orna.

Outra das preciosidades da autora que encontramos em Sobre-viventes! é a crônica “Branco sempre sabe quem é negro. Nós, negros, é que nos confundimos (e nos dispersamos)!”, em que Cidinha, a partir da polêmica que envolveu a escalação de Fabiana Cozza para interpretar a Dona Ivone Lara, tece comentários a respeito dessa aparente interminável discussão ao redor da negritude alheia. E provoca: “Faremos o mesmo com Ana Maria Gonçalves em algum momento? Quando deixar de ser interessante para nós, diremos que ela ‘não é tão negra assim’? Minha questão é simples, por um lampejo de coerência, Fabiana Cozza não pode deixar de ser negra agora, se antes a víamos como negra”. Preciso.

Por fim, a qualidade de Sobre-viventes! não surpreende ninguém que admira o trabalho de Cidinha da Silva. Quem já o conhece, sabe muito bem que ela costuma acertar em cheio. Já quem não o conhece, tem nesta coleção uma belíssima oportunidade de descobrir a palavra afiada da autora. Indo além, Sobre-viventes! também serve como uma ótima amostra de seu pensamento, provando que a leitura que ela faz do cotidiano não é só rica, como pertinente. No mais, não é exagero repetir: Cidinha da Silva é arguta, todo mundo sabe.


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Uma resposta

  1. Muito obrigada pela leitura atenta e arguta, Arman. O arguto aqui é você! Sempre uma alegria me deparar com sua decodificação do que escrevo. Gracias, saúde. Um beijo, cidinha.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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