“Deixei de trabalhar oito horas por um
salário para trabalhar vinte e quatro
horas por um sonho”
Marlírico é a obra de estreia de Marlon Pires Ramos, publicada pela editora Escola de Poesia, de Porto Alegre, no outono de 2019.
O livro é composto por vinte e um poemas, dispostos em quase setenta páginas. Por mais que este texto tenha início com essa apresentação numérica, o que este livro nos entrega são percepções que não podem ser quantificadas: a vivência pessoal e intransferível de um cidadão urbano, o sentimento genuíno de alguém que ama, as dores, anseios e raiva, muita raiva de quem tem consciência de classe e de raça.
O texto da orelha é assinado pelo jornalista Glauber Cruz e o prefácio é de Ronald Augusto, poeta, ensaísta e professor. O prefácio é intitulado “A timidez ousada de MARLÍRICO”, e nele Ronald Augusto faz uma análise breve, mas profunda, sobre a poesia de Marlon Pires Ramos. É difícil escrever qualquer tentativa de elogio à obra depois de ler o prefácio, porque nele os apontamentos são feitos de uma forma que mobiliza conceitos teóricos em uma linguagem acadêmica, de modo que parece que qualquer outra tentativa de escrita não vai ser tão certeira quanto. Então este texto é uma tentativa. Uma tentativa de dimensionar e apontar pelo menos um pouco da beleza que há em Marlírico.
O primeiro poema do livro é “Vários tetos”. Um poema que em seu penúltimo verso situa geograficamente o leitor ao pontuar “Já basta esse Moinhos de Vento inteiro”, ou seja, uma poesia/produção ambientada em um cenário urbano de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O último verso diz “Parada é pesada. Bagulho tenso”. Como se fosse um aviso de que as páginas que seguirão não trarão superficialidades ou temas leves. Para além disso, nota-se um eu-lírico que se apresenta como um homem negro: “Já basta o chefe idiota/ — Vc não é negro. É pardo…”. Considerações importantes para a compreensão da poética de Marlon Pires Ramos.
O poema que segue, “Tô aturando”, tem início com uma citação nominal à música “En tu mira”, do rapper baiano Baco Exu do Blues e é estruturado no ritmo da música, o que resulta em uma quase paródia. No poema percebe-se um eu-lírico cansado de cobranças, que dirige-se a um público que faz exigências sem querer compreender as cobranças internas e problemas pessoais daquele que cobram. É um poema que tem sonoridade, evidenciada principalmente pelo uso das rimas e repetição de palavras, o que resulta em uma sensação de sufocamento altamente imagética.
No texto da orelha Glauber Cruz diz que não ficaria surpreso se soubesse que Marlon já consegue andar por Porto Alegre de olhos fechados. Podemos perceber isso ao constatarmos o quanto a produção poética de Marlon Pires Ramos é situada geograficamente com muita clareza. Um dos poemas no qual essa questão fica mais evidente e vem confirmar a urbanidade na escrita do poeta é “Pernadinha”, que para além de narrar uma caminhada de quase uma hora pelas ruas de Porto Alegre, apresenta uma linguagem com gírias e que subverte as normas consideradas padrão, de modo a propor uma nova forma de encarar a linguagem escrita, muito próxima da coloquialidade, no sentido de aproximá-la da fala e de criar neologismos. Esta é uma característica já perceptível nos poemas anteriores e que continuará presente nos demais.
O poema “A Fada Fanon” narra um episódio no qual, em um contexto carnavalesco, uma fada chamada Fanon faz com que a “palmitagem” deixe de existir. É um poema engraçado, e traz um alívio cômico, ao mesmo tempo que nos leva a refletir sobre relações afetivas e identitárias.
Ao término da leitura, é possível perceber que os poemas formam um todo que evidenciam a vida de um eu-lírico que se apresenta como negro, que tem vivências muito marcadas em decorrência de seu lugar social. Poemas que pela disposição gráfica parecem falar sobre assuntos diferentes, mas no fim, é um só: a vida de um mesmo eu-lírico que é capaz de se emocionar com uma exposição de Arte, com as histórias de vida da avó, que vê no amor uma certeza, seja ele platônico ou real, que exalta a beleza da mulher negra, mas que também sente raiva, muita raiva, uma raiva quase palpável. Um eu-lírico repleto de referências literárias e musicais, que está aberto a conhecer e respeitar outras formas de viver a sexualidade que não necessariamente é a sua, e que também se deixa abater pelas dificuldades da vida, para logo em seguida recuperar as esperanças. Alguém que faz críticas sociais e apresenta as contradições da vida.
A poesia de Marlon Pires Ramos mobiliza sentimentos: Indignação, raiva, amor, gratidão, esperança. E nela tem de tudo. O toque macio das mãos de quem faz carinho e o sussurro ao pé do ouvido de quem diz que tudo vai ficar bem. A poesia de Marlon é remédio. É necessária. É política.
Marlon escreve versos como alguém que confessa sua vida e o que é bonito em sua poética é justamente a subjetividade presente em cada poema. Chama atenção sua mobilidade urbana, a criação de novas palavras e com isso um incentivo a outro modo de pensar a língua escrita, um modo que se aproxime mais da língua falada, assim como as gírias que podem ser novas dependendo da disposição geográfica do leitor, mas que não deixam de ser gírias. Uma poesia que não apresenta a preocupação em se encaixar em um padrão estético porque segue seu próprio padrão, sua própria verdade e estilo. Como no verso do poema “#elenão”, a escrita de Marlon é “tipo Jorge de Lima o erudito e o popular na mesma linha”.
Para além dos poemas, merece elogio a capa e o projeto gráfico do livro, assinados por Aline Gonçalves, assim como as ilustrações que são de Miti Mendonça. Em conjunto, capa, projeto gráfico e ilustrações, formam um todo conceitual, que juntos também conferem lirismo à obra.
Só a existência desse livro já é poesia em si e o que fica é o desejo de que as pessoas conheçam a escrita de Marlon. Uma escrita que reverbera. Que mais pessoas possam mergulhar neste Marlírico.
Fonte: Página Marlírico no Facebook |
Marlon Pires Ramos nasceu numa tarde quente no setembro de 92. Já foi estoquista, vendedor, caixa, freelancer. Estudante de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo MilTons -Masculinidades Negras. Também faz parte da da produção da Festipoa Literária – festival literário de Porto Alegre. Desde 2018 participa da balada Literária. Poeta preto malungo. Marlírico quando escreve. Filho de Maria e Mario. Mas acima de tudo Neto da Dona Terezinha. Tem alguns versos publicados na revista de poemas Ovo da Ema e no blog Voz Pública da Poesia. Marlírico é seu primeiro livro.
O livro pode ser adquirido diretamente com o autor através do e-mail [email protected].
Entrevista
1- Pelos poemas, parece que “Marlírico” é uma denominação que partiu dos seus amigos ou pessoas próximas a você. Como surgiu esse nome e o que ele significa? Como foi o processo de abraçar o nome?
Heheh sim sim. Numa reunião do grupo MilTons que o Airan Albino, meu grande amigo, depois de ler algumas poesias minhas disse “mas é um Marlírico esse cara”. Daí fiquei com o nome na cabeça. Adotei esse nome em alguns versos depois. Passou uns meses e na primeira vez que estive em SP mostrei meu zine pro Marcelino Freire. Daí ele disse “Marlírico bom título pra livro ein” pensei na hora meu primeiro livro vai ter esse nome.
2- Com que idade você começou a escrever e quando decidiu que queria publicar um livro?
Comecei a escrever lá por 2007, 2008, tipo isso. Comecei escrevendo crônicas. Eu lia muito jornal na época. Fui lendo e escrevendo cada vez mais. Até então escutar Emicida e ler Sergio Vaz, bah, daí eu me achei no mundo da literatura. Investi tudo na poesia. E pensar em livro eu sempre pensei mas sempre foi algo distante. No ano passado comecei a publicar versos no Facebook. O Ronald Augusto viu e pediu pra publicar no blog dele, foi onde tudo começou. A Escritora Eliane Marques viu e me chamou pra conversar sobre um livro.
3- Qual a sensação de ter um livro publicado?
Bah, sensação de sonho realizado. Eu peguei o livro na terça-feira, dia 3 de setembro, e viajava pra SP na quarta pela manhã. Cheguei na editora e vi o livro. Comecei a chorar feito criança. Passou um filme na cabeça, aliás, ainda passa.
4- O que te motiva a escrever e como é seu processo de escrita?
Bah, o que me motiva a escrever? Bah, eu sempre fui muito quieto, sabe? Nunca fui de falar muito e tal, sempre fiquei na minha, tímido, em silêncio. Mas quando eu comecei a escrever vi que tinha muita coisa pra falar. Por isso meu texto tem essa vibe de conversa, saca? Sempre quero conversar e ouvir meu leitor. Essa é a real. Meu processo é bem de momento. Sempre que tô caminhando, tô escrevendo. É muito uma parada de sentir o cotidiano, o que tá acontecendo ao redor. É uma frase do motora do ônibus, um fato que aconteceu na rua, uma lembrança da minha avó, tudo é história, é poesia.
5- Se você pudesse apresentar seu trabalho para alguém que admira muito, mas tivesse que escolher apenas um de seus poemas, qual você escolheria e por quê?
Eu já sonhei com isso sabia? Hahah seria o Emicida, óbvio. Eu falaria o “Pretarainha”. É um texto muito importante, escrito em 2017, que foi onde tudo começou, esse processo de deixar mais preto as leituras e referências mesmo.
6- Ser estudante de Letras em uma universidade pública tem influência no seu modo de escrever poesia? Você percebeu alguma mudança na sua escrita depois que entrou na universidade?
Sim, tem uma influencia sim, mas é indireta, não direta, porque faço questão de não usar um português clássico, correto, certinho. Uso gírias, é bem o modo de falar mesmo, oral. A Academia não considera isso literatura mas estar lá dentro é esse contraponto, essa perspectiva diferente do comum. Isso é muito valioso.
7- Durante a leitura de seus poemas fica evidente que você tem um referencial teórico e literário bastante notório. Você pode nos indicar algumas de suas leituras formadoras e aquelas que foram referências em sua vida?
Sim, sim, procuro ler bastante. Leio muito no ônibus. Minha maior influência é musical, tipo Emicida, Zudizilla, Djonga, Baco Exu do Blues, Kendrick Lamar demais, muito mesmo, principalmente “To pimp a buttlerfly” e “Damn”. Samba muito tbm. E na poesia Sergio Vaz – leiam Flores de Alvenaria – Cristiane Sobral, Cuti, Ricardo Aleixo, pessoal do slam de Porto Alegre, tipo Cristal, Afrovulto, Bruno Negrão, e de SP Mel Duarte. Nelson Maca tbm, Marcelino Freire muito.
8- Como você, enquanto poeta negro e escritor publicado, se vê dentro do meio literário? Acha que é um ambiente acolhedor e receptivo?
Bah, acho que tenho que ir até o leitor. Principalmente nossos irmãos. Muitos escrevem e tal, mas ninguém dá apoio ou não tem grana pra passagem. Fui abençoado por conhecer pessoas que me ajudaram muito pagando lanche, pagando passagem, indicando cursos e oficinas de poesia e tal. Agora é devolver isso indo até os meus.
Acho que é isso. Tipo isso.