Lil Nas X,”Montero” e a potência de um homem negro e gay

Ainda que em menor grau, desde Arizona Baby, lançado pelo rapper Kevin Abstract em 2018, a indústria musical, mais precisamente a do rap norte-americano, não havia testemunhado um trabalho tão importante para a juventude LGBTQIA+. Logo, com o lançamento de Montero em setembro de 2021, os fãs do rapper Lil Nas X puderam finalmente ouvir, analisar e absorver músicas, temas e reflexões que dialogassem com suas sexualidades, criadas por um artista em ascensão, completamente despreocupado em como a mídia e a sociedade conservadora norte-americana iria reagir com seu trabalho (Lil Nas X revelou ser gay enquanto estava no topo do mundo com a música Old Town Road, e sua versão remix Old Town Road – feat Billy Ray Cyrus, Young Thug & Mason Ramsey).

Montero tem sua espinha dorsal formada pelos singles Montero (Call Me by Your Name), faixa que abre o disco; Sun Goes Down; Industry Baby, que tem a participação do rapper branco Jack Harlow (mais sobre isso abaixo); e Thats What I want. Montero (Call Me by Your Name) abre o disco e Lil Nas X canta: “Você vive no escuro, garoto. Eu não posso fingir.” Sobre uma noite de sexo com um rapaz que ainda está no armário, e possivelmente em um relacionamento com uma mulher, que Nas chama de Eve, fazendo alusão à Bíblia. Se pensarmos na homofobia da indústria musical, podemos entender esse trecho como um comentário sobre o modo com que vários outros artistas acabam performando essa heterossexualidade em suas carreiras, seja cantando sobre relações com mulheres — sendo Lance Bass, do NSYNC, um dos nomes imediatos em minha mente —; usando casamentos de fachada para se protegerem dos tabloides, ou, como no caso de George Michael, que para evitar que sua mãe se preocupasse com sua saúde, só revelou ser gay para o público em geral após sua morte (uma vez que nos anos 80 e 90, aos olhos da sociedade, ser gay era sinônimo de ser soropositivo graças à explosão da AIDs). 

Embora nomes como Frank Ocean e Tyler, the Creator — cuja sexualidade é alvo de constante especulação — sejam mundialmente conhecidos, nenhum rapper negro abertamente gay conseguiu tanto sucesso e reconhecimento pelo público, pela crítica, e principalmente, nos charts. Este sucesso se traduziria em muitas portas abertas e parcerias, certo? Errado. Lil Nas X ainda encontra dificuldade em fazer feats com outros rappers negros em suas músicas, e o exemplo disso é a participação de Jack Harlon, um rapper branco na faixa Industry Baby. Certa vez Nas X foi questionado por um seguidor o motivo de nenhum rapper negro ter participado de Montero e ele foi sucinto: “talvez seja porque os artistas negros do rap não querem trabalhar comigo”. Essa resposta aponta um problema não tão novo assim: a homofobia dentro do rap — tanto entre os fãs como entre os próprios artistas. Ainda na faixa, cujo videoclipe foi gravado em uma penitenciária, o rapper brinca com o infame caso dos Satan Shoes em que foi processado pela Nike ao vender pares de tênis contendo sangue humano. Vale ressaltar que Lil Nas X usou os lucros de Industry Baby para pagar as fianças de pessoas negras nas penitenciárias norte-americanas.

Chegamos em That’s what I want, quarto single do álbum, uma faixa com pegada mais pop, e aqui Lil Nas X canta sobre sua dificuldade em encontrar um amor verdadeiro enquanto homem negro, gay e famoso em um gênero musical repleto de homofobia.

Eu quero alguém que me ame.
Eu preciso de alguém que precise de mim.
Porque não é certo estar sozinho à noite com meus sonhos.

Fonte: www.todosnegrosdomundo.com.br

Em Sun goes Down, o rapper aposta em uma quase balada onde ele canta sobre suas inseguranças desde a infância, quando sofria bullying por ser negro e gay, e porque não sabia lidar com sua sexualidade em sua casa, visto que seu pai era um cantor gospel homofóbico. Apesar de falar sobre um possível suicídio (“Me dê uma arma e eu irei ver o sol”), o resto da música é repleto de esperança para as pessoas que, assim como ele, consideraram suicídio no passado. A música ganha ainda mais importância se levarmos em consideração o alto número de suicídios entre pessoas LGBTQIA+. Basta alguns minutos no Twitter do cantor para encontrarmos testemunhos de fãs que obtiveram coragem de sair do armário para seus pais após o lançamento de Montero.

Em Void, a 12ª faixa, Lil Nas X continua sua jornada em busca de um amor genuíno, baseado na reciprocidade, pois, segundo ele, ninguém o ama como esse homem misterioso da música, que ele chama de Blue. Dialogando com Sun Goes Down, Void dá continuidade aos pensamentos dolorosos durante sua infância e adolescência, quando ele não sabia lidar com sua sexualidade. E para os fãs de literatura YA, Com amor, Simon é um livro que dialoga direta ou indiretamente com as letras, principalmente se levarmos em consideração que Lil Nas X está conversando com um rapaz através de bilhetes, uma referência direta ao filme, visto que lá, o protagonista conversa por e-mail com seu paquera, apelidado também de Blue.

Em última instância, apesar de não ser perfeito — na minha opinião o disco perde sua força a partir da décima faixa —, Montero (que conta com participações de nomes como Elton John, Doja Cat, Miley Cyrus, Megan Thee Stallion e Kanye West, este, na produção) é um álbum importantíssimo, uma vez que aborda temas bastante relevantes atualmente. Como complemento, gostaria de indicar alguns livros que dialogam em alguns temas com o mais novo trabalho de Lil Nas X: Seja Homem, de JJ Bola; Questão de Raça, do filósofo Cornel West; Estarão as prisões obsoletas?, de Angela Davis; e Não digam que estamos mortos, de Danez Smith, e basicamente todos os livros de James Baldwin.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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