Parábola, Fogo, Solidão e Ruína

Por Arsenio Meira.


Faz uns 10 anos que olhava para este romance em livrarias, sebos, casa de amigos e familiares. Olhava-o distante, posto que detentor de um tema que não faz muito minha cabeça. Mas a Literatura e o Tempo são dois aliados. Indeléveis. Não tardou, e o tempo-maturidade me levou a romper esse divórcio que havia entre o livro e o meu mapa literário.

Ao término da leitura, penso com meus botões em como será o mundo daqui a cinqüenta anos, com os desdobramentos da engenharia genética, uso de células tronco, clonagem, difusão da televisão digital, aquecimento global, celular androide, hidrogênio como a nova fonte energética, fundamentalismo religioso e as novas potências querendo sua fatia do bolo. Bradbury em 1953, ao escrever Fahrenheit 451, foi além, pois pensou e criou um universo onde os livros eram proibidos e os bombeiros, ao invés de combater o fogo, tinham que usá-lo para manter a ordem, destruindo a fonte de conhecimento.

Apesar disso e da presença de algumas inovações tecnológicas, como os avançados sistemas de transportes, bebedouros de refrigerante, carros velozes, guerras nucleares e televisões interativas, o futuro de Bradbury é bastante próximo ao que estamos vivendo hoje. Isso porque, em vez de simplesmente apostar na frieza científica e nas catástrofes, o autor investiu numa temática humana, de ordem cultural, tornando os problemas levantados mais próximos de nossas preocupações.

Esta virtude acaba se refletindo na própria linguagem, com cenas mais baseadas em sentimentos do que em ações e aparatos tecnológicos. E mesmo quando se faz necessária alguma explicação sobre o funcionamento de um equipamento ou sobre os motivos que resultaram naquelas transformações sociais, elas aparecem dentro do enredo, através de conversas entre os personagens, sem precisar abrir parênteses ou notas de rodapé.

A história é contada através do bombeiro Guy Montag, em falsa terceira pessoa. Toda a trama se desenrola de acordo com o seu olhar. Se no início do livro, Montag mostra-se como um operário, uma engrenagem qualquer que cumpre mecanicamente ordens no trabalho e volta para dormir em casa, ao conhecer sua nova vizinha, Clarisse McClellan, ele passa a reagir como nós, leitores, diante desse universo estranho proposto por Bradbury. A partir das conversas com Clarisse, o bombeiro começa a redescobrir o mundo; abre-se uma fresta mítica e seu cotidiano perde toda e qualquer vulgaridade. O personagem questiona os alicerces que sustentam sua vida, desde o comportamento da sua esposa Mildred ao trágico motivo que dizimou os livros (por serem subversivos…)

O contraste entre a liberdade de interlocução com Clarisse e o vazio irreversivel de Mildred, afundada em quantidades industriais de pílulas para dormir, aliado ao convívio com sua “família” na televisão, faz com que Montag desate o nó para embarcar jornada em busca de respostas. E elas surgem. Nas palavras do comandante Beatty e do professor Faber, ficamos sabendo junto com Montag como e por que o valor da reflexão foi abandonado pela sociedade. São frases dignas de grifo, verdadeiras aulas de teoria da comunicação, uma coletânea dos pensamentos frankfurtianos de Walter Benjamin, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Jürgen Habermas. O discurso adquire tons políticos claros, mas aparecem tão bem encaixados na trama que só aumentam a qualidade literária de Fahrenheit 451.

Com um lança-chamas, Bradbury ilumina questões como a influência da indústria cultural nas relações pessoais, o movimento do politicamente correto em defesa das minorias, o controle social exercido pelos meios de comunicação, o consumismo, a alienação e o sucessivo esvaziamento das ideias resultante da perda da individualidade.

O futuro proposto por Bradbury parece ainda mais obscuro do que os de outros clássicos da ficção científica como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, que são construídos em cima de governos autoritários. Em Fahrenheit 451, a censura se fortifica em função do desinteresse da sociedade pelo conhecimento, mais preocupada que está em manter sua felicidade barulhenta e vazia. Deste vácuo nascem ruínas intransponíveis. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

R$ 5.829/mês 72%

Participe do Clube Impressões

Clube de leitura online que tem como proposta ler e suscitar discussões sobre obras de ficção que abordam assuntos como raça, gênero e classe, promovendo o pensamento crítico sobre a realidade de grupos minorizados.