Em ensaio intitulado “A água é uma máquina do tempo”, publicado na Revista eLyra em 2021, Aline Motta, artista multidisciplinar, discorre sobre a intimidade de seu processo criativo. E ela o faz de maneira muito elegante, desnudando tudo aquilo que reconhece como fonte de seus trabalhos por meio de uma escrita fluida e bela.
É interessante saber que o conceito de fabulação crítica, da Saidiya Hartman, ou que uma frase dita por Tiganá Santana em uma entrevista – “inventar a partir de um inventário” – têm influência sobre o fazer artístico de Motta, mas o mais valioso é perceber como essas e outras referências se dão, se confluem e se transformam em seus trabalhos. Não é que ela nos ensine um modelo, nos dê um passo a passo. O que a autora faz é nos mostrar como um bom repertório aliado àquilo que nos move – no caso de Motta, sua própria família, especialmente a sua avó – são capazes de nos propor ótimos elementos para dar forma a nossos projetos artísticos. E mais, não importando se essas referências são também artísticas, se são crítico-teóricas ou de outra natureza. Ao fazer tais movimentos em seu ensaio, a própria autora se torna referência, sendo assim parte do repertório de outros artistas. Como em um círculo contínuo, fazendo parte da colcha de retalhos que outros costuram – sem que isso tire dessas pessoas a sua autoria, deixemos claro – assim como tantos outros estão presentes em sua própria colcha de retalhos.
Contudo, o ensaio de Aline Motta também nos é precioso por outro motivo: ele nos parece uma chave importantíssima para que pensemos seu livro de mesmo nome, A água é uma máquina do tempo (Círculo de Poemas), volume de poemas que, ousamos dizer, vai além do gênero, reforçando o adjetivo “multiartista” que usamos aqui para nos referirmos a ela. Em uma analogia bem simples, é como se no ensaio tivéssemos a sua teoria e no livro, a sua prática. Mas não, não é que dependemos da leitura do ensaio para que possamos compreender o trabalho artístico de Motta – o que seria uma tristeza –, mas é que ele se faz um elemento que amplia a experiência estética que a autora nos proporciona. A economia da obra fala por si só, mas ter alguma noção dos mecanismos criativos que lhe dão origem nos permite olhar para ela a partir de outro prisma. E vamos combinar, não é à toa que a autora tenha nomeado os dois trabalhos com o mesmo título. Não dá nem para dizer que é uma pista. Está dado. É de graça.
A água é uma máquina do tempo, o livro, é um trabalho que, como já adiantamos, não se fixa ao que se é em sua gênese. Um livro de poemas, é verdade, mas também mais do que isso. Nos vem à mente o termo “livro de arte”, mesmo sem a certeza se ele cabe aqui. Mas dizemos isso porque Aline Motta não se vale apenas de sua poesia para compô-lo. Ela também faz uso de fotografias, mapas, diários, recortes de jornais etc. E com essas experimentações, a autora acaba por criar um fio narrativo mesmo que a linearidade temporal não pareça ser uma preocupação sua.
Em A água é uma máquina do tempo, o sujeito poético se debruça sobre a história de mulheres de sua família percorrendo um caminho que começa nos tempos de sua tataravó. As violências e microagressões, sejam elas raciais, de classe ou gênero, são tão presentes nas vidas dessas mulheres que parecem garras encravadas. Contudo, não são só esses os temas dos poemas de Aline Motta. A morte e o luto são questões perenes ao longo do livro. Sobretudo quando o sujeito poético trata de sua mãe, revelando uma relação delicada com a qual parece ainda precisar se resolver ao mesmo passo que também precisa aceitar a sua partida.
Voltando ao ensaio de Motta, é interessante observar como as mulheres dessa família, que ela tem como foco em seus poemas, dão forma às plurivozes ancestrais que ela se refere logo no início do mesmo. E percebemos que o seu fazer poético em torno delas parece ser um exercício no qual busca pôr em prática a fabulação de novos laços familiares. O que ela faz não só por meio de suas lembranças, mas também a partir de todo arquivo que ela recupera e tornam a existência de suas mais velhas uma coisa mais tangível, tal qual Hartman – que como já dissemos, é mencionada por Motta como referência – faz em sua produção intelectual. Inclusive, esse movimento fabulatório crítico, que nas mãos de Motta também ganha contornos artísticos, nos presenteia com um dos momentos mais impactantes desse trabalho da poeta: ela cria um mapa com frases recortadas do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, de parte da cidade do Rio de Janeiro onde o conto se passa, mas deixou de existir por conta de obras e demolições. Isso logo após versar a respeito do episódio no qual o autor fora fotografado após uma síncope no cais, e dizer que “para recobrar a consciência, costumava refazer mentalmente / o percurso de alguns de seus personagens pelas ruas do centro”, e depois questionar: “Esse memorial de trajetos ainda faria sentido / no futuro?”. Tudo isso ganha mais força ainda por conta do diálogo que a multiartista faz com o próprio conto supracitado no poema que escreve sobre os bebês deixados para serem criados por feiras de um convento na Rua Evaristo de Veiga: “Ambrosina sabe da rotina dos enjeitados e conta mais um. Ela / também ouve a sineta, mora do outro lado da rua. / Lançar bebês na roda de madrugada assegura mais ainda o anonimato. / ‘Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.’ / Nem todas as mães vingam.” Poderoso.
Os poemas de A água é uma máquina do tempo nos desnorteiam. Com eles, Aline Motta não nos poupa do desconforto, pois ao expor feridas pessoais, nos convida a fazer movimento parecido, pois essa não é uma ação narcisista. É o que ela chama em seu ensaio de umbigada. Ela projeta seu umbigo para a frente e nos convida a nos juntarmos a ela no centro da roda dessa dança. Até porque, salvo as devidas proporções, as experiências vividas por ela e sua família, e que são compartilhadas por meio de seus versos, não são novidade para muita gente. Essa é também a realidade de muitas famílias brasileiras. Por fim, e para dar eco ao título tão marcante que Motta escolhe para esses seus trabalhos, trazemos alguns versos de outro poeta, o Thiago Elniño: “O mais próximo de casa que eu estive foi o mar / Boto os meus pés na água e me lanço a pensar / Como é a vida aqui, como é a vida lá / Sinto que eu não sou daqui, pra casa eu quero voltar”.