A ampla e imperiosa “Menina de fogo”, de Taylane Cruz

Um de janeiro de mil novecentos e noventa e seis. Essa é a data da primeira entrada do diário que dá forma a Menina de fogo (Jandaíra), romance de estreia de Taylane Cruz que nos faz testemunha de um ano inteiro de amadurecimento de Maria, uma garota de apenas doze anos, personagem central da história e dona de uma personalidade cativante.

De escrita fluida, Menina de fogo não tarda em nos convencer a acompanhar a jovem protagonista da história. Ampla e imperiosa, adjetivos que a própria usa para se definir, a pequena vivencia diversas situações que vão lhe moldando, transformando-a pouco a pouco numa pessoa diferente. A consciência a respeito de si e a respeito dos espaços que ocupa é algo que a motiva, sempre seguindo em busca de compreender melhor não só a si, mas o mundo que a cerca. 

Não há exatamente um grande evento em Menina de fogo. Os acontecimentos que ocorrem na história, por mais impactantes que possam ser, são da ordem do ordinário. Das alegrias às violências, nada que não faça parte do cotidiano, feliz ou infelizmente — além de toda magia e afeto presente nas letras da protagonista, brutalidades como abuso sexual e racismo também fazem parte da narrativa. 

Contudo, embora não haja um grande plot em Menina de fogo, não é nesse ponto que a força do texto de Cruz se faz muito claro: a maneira como a história é escrita, ou melhor, contada, é o que nos seduz. A escrita da autora é, por vezes, muito bonita. Ecos da prosa poética — que Franciane Conceição da Silva, prefaciadora da obra, chama de ferocidade poética — sobram ao longo do texto. E isso, inclusive, nos faz esbarrar naquela famigerada questão da verossimilhança. Por mais sapiente (outro adjetivo bastante recorrente no romance) que a menina que nos narra tudo seja, às vezes é difícil acreditar que uma pessoinha escreva tão belamente daquele jeito. E olha que no início da história ela já nos avisa ser alguém que gosta de “saborear as palavras como se fossem um doce, um caramelo, uma goma de mascar”. E não é só isso, o repertório de Maria também é impressionante. Portanto, há algum estranhamento. Porém, em diversos momentos Cruz consegue imprimir no texto uma voz que não nos deixa dúvidas que aquela narradora está por sair da infância. Logo, nos damos por vencidos (quase como se lembrássemos do acordo silencioso entre autor e leitor e deixamos passar).

Ainda sobre a saída da infância, é interessante perceber o mergulho da protagonista na adolescência por meio do seu vocabulário. Quando menos vemos, os palavrões e termos afins passam a se enfiar em suas frases. E sempre que isso ocorre, é assim, abrupto. E isso dialoga com a descoberta de sua sexualidade. Aos poucos, aqui e acolá, ela se defronta com a curiosidade e a ousadia de experimentá-la. O que também ocorre a respeito de sua percepção de mundo à medida que ela vai compreendendo um pouco mais da vida.

Menina de fogo é um bom romance de estreia. Taylane Cruz amarra tudo muito bem. E de quebra, ainda traz um elemento de nostalgia muito forte para quem viveu os anos noventa, sobretudo em cidade pequena. Há diversos signos em seu texto que nos remete àqueles tempos. Além disso, o fascínio que a jovem Maria tem pelas palavras soa como uma declaração de amor à escrita e à literatura. Isso tudo em mistura faz o romance acontecer. Romance esse que nos mostra que a infância de crianças negras pode ser muito mais do que violência e dor. Há muita magia, ternura e amor também. 

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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