Sobre ‘A origem dos outros’, de Toni Morrison

A origem dos outros
Toni Morrison era gigante. Nascida em Lorain, Ohio, nos Estados Unidos, se formou em Inglês pela Universidade Howard, fez mestrado na Universidade Cornell – defendendo uma tese sobre o suicídio nas obras de William Faulkner e Virginia Woolf – e mais tarde, ao se mudar para Nova York, trabalhou como editora na Random House, onde publicou e ajudou a popularizar autores como Angela Davis e Chinua Achebe. Apesar de toda essa trajetória no mundo das letras, só viera a publicar o seu primeiro romance, o magistral O olho mais azul, em mil novecentos e setenta, quando já tinha trinta e nove anos. Mesmo com esse começo tardio, alcançou sucesso de público e crítica, se tornando, em mil novecentos e noventa e três, a única mulher negra a ser laureada com o Prêmio Nobel de Literatura. Toni Morrison nos deixou em cinco de agosto de dois mil e dezenove, aos oitenta e oito anos. 
 
Conhecida por conta de sua prosa de ficção – ela é autora de onze romances, dentre eles, Sula, Song of Solomon, Tar Baby (os três títulos sem edições brasileiras) e Amada, uma de suas obras mais aclamadas e que lhe rendeu um prêmio Pulitzer –, Morrison é também ensaísta, tendo publicado os livros Playing in the dark: whiteness and the literary imagination (2007), The source of self-regard: selected essays, speeches, and meditations (2019) e A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura, editado no Brasil pela Companhia das Letras com prefácio de Ta-Nehisi Coates e tradução de Fernanda Abreu.

Em dois mil e dezesseis, Toni Morrison fora convidada a proferir as palestras Norton na Universidade de Harvard. Baseado nesses discursos, A origem dos outros é uma bela amostra da pensadora que Morrison foi. Ao decorrer dos ensaios presentes no livro, a autora discorre sobre questões raciais que perpassam a ficção e a vida. Suas reflexões partem tanto de experiências pessoais como de excertos de clássicos da literatura, e com isso, ela vai tecendo aquilo que chama de Outremização
 

A Outremização consiste na transformação de um sujeito em um Outro. Mas como diz Morrison, “descrições de diferenças culturais, raciais e físicas que denotam ‘Outremização’ mas permanecem imunes às categorias de valor ou status são difíceis de encontrar”. O Outro é sempre inferior, menor, um estrangeiro. Inclusive, Morrison defende que ao negarmos ao Outro a sua individualidade específica, o fazemos para garantirmos a nossa. Transformar uma pessoa em um Outro é uma maneira de não nos transformamos nesse estrangeiro. Aos lhes privar de sua humanidade, estamos buscando manter a nossa própria humanidade. E por muitas vezes, isso se dá por meio da violência e do racismo. Nas palavras de Morrison: “A necessidade de transformar o escravizado numa espécie estrangeira parece ser uma tentativa desesperada de confirmar a si mesmo como normal. A urgência em distinguir entre quem pertence à raça humana e quem decididamente não é humano é tão potente que o foco se desloca e mira não o objeto da degradação, mas seu criador. Mesmo supondo que os escravizados exagerassem, a sensibilidade dos senhores é medieval. É como se eles gritassem: “Eu não sou um animal! Eu não sou um animal! Eu torturo os indefesos para provar que eu não sou fraco”. O risco de sentir empatia pelo estrangeiro é a possibilidade de se tornar estrangeiro. Perder o próprio status racializado é perder a própria diferença, valorizada e idealizada”.

 

Em A origem dos outros, Morrison nos lembra a importância de se ter uma perspectiva diferente ao ler o mundo – e consequentemente, a literatura. É por causa de suas experiências enquanto mulher negra que ela é capaz de enxergar detalhes que são tão costumazes a indivíduos racializados, mas que passam ao largo de muitos daqueles que sequer param para pensar em tais questões. Precisas, as reflexões da autora nos abrem caminhos em direção a diversos confrontamentos. Por exemplo, ela questiona as escolhas feitas por autores como Ernest Hemingway e Harriet Beecher Stowe e com isso, nos faz repensar as maneiras como temos feito nossas leituras; assim como se vale da própria literatura, chegando a comentar detalhes da construção de seus romances, a fim de discutir o Outro e a maneira de narrá-lo. 
 

Nos ensaios que compõem A origem dos outros, temos contato com uma Toni Morrison crítica, que busca respostas à questões políticas e históricas, que propõem discussões acerca de identidades possíveis e como nós, enquanto sociedade, as construímos e lidamos com elas. Mas além de tudo, temos uma Toni Morrison que acredita na literatura e a enxerga como um meio para o debate e para as transformações relacionadas aos problemas que a todo tempo ela não teme enfrentar. 

 

Uma resposta

  1. Adorei Arman. Estou trabalhando com esse livro na minha tese, tentando colocar toni Morisson e Fanon para conversaem sobre essa experiência do negro.
    Obrigada! Sua escrita ajudou muito

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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