Apagamento feminino e virilidade masculina em ‘O mundo se despedaça’

O mundo se despedaça, publicado no Brasil pela Companhia das Letras (também editado pela TAG Livros), com tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva, é considerado um dos romances nigerianos mais importantes das últimas décadas desde sua publicação em 1958, influenciando uma grande quantidade de escritores de países africanos. De forma consistente e simples, Chinua Achebe escreve sobre a invasão do homem branco europeu na Nigéria pré-colonial, mais precisamente em uma vila fictícia chamada Iguedo em 1890.

O protagonista, Okonkwo, é o protótipo do macho tóxico, tem atitudes brutais e violentas e também é homofóbico e misógino. Ressentido pela fama de fraco do pai, cresceu reprimindo qualquer tipo de demonstração de afeto e amor, inclusive, e principalmente, aos dez filhos e as três esposas. Extremamente ignorante com todos à sua volta, Okonkwo usa o fato de ter sido, em sua juventude, o melhor lutador para se colocar acima de toda a população. Na minha opinião, é praticamente impossível ter uma boa experiência quando todas as ações do protagonista me fazem questionar se devo de fato continuar a leitura. Romance, contos, filmes, séries e peças de teatro com protagonistas antipáticos não são novidade, porém nesses casos, o autor corre o risco altíssimo de afastar o leitor, e foi isso que aconteceu comigo durante a jornada do protagonista e suas detestáveis ações direcionadas aos filhos e as esposas. 

A escrita simples e os curtos capítulos proporcionam uma leitura fluida e direta, porém os pontos positivos da história criada por Achebe acabam por aí, visto que não é agradável ler sobre um um líder opressor que utiliza daddy issues (problemas paternos, em tradução livre) como justificativa para espancar suas esposas, seus filhos, ou até mesmo desconhecidos, sempre que traços da herança da fraqueza e covardia do pai aparecem em sua personalidade. 

O tratamento que as mulheres recebem no romance é problemático, para dizer o mínimo, e imagino que um romance extremamente patriarcal como esse não deve ser uma leitura agradável para mulheres que não compactuam com a ideia da submissão da mulher na sociedade. Neste livro, as mulheres existem apenas para procriação, quase não possuem falas, e só aparecem na história para serem o saco de pancadas dos maridos ou para gerarem uma enorme quantidade de filhos. Ekwefi, a segunda esposa do protagonista, por exemplo, perdeu nove dos dez filhos. O trecho em que dor é narrada é de partir o coração:

“À medida que enterrava um filho atrás do outro, sua dor ia sendo substituída pelo desespero e, mais tarde, por por uma terrível resignação. O nascimento de um filho, que para qualquer mulher era a coroação de sua glória, para Ekwefi tornara-se simplesmente motivo de agonia física, destituída por completo de promessa.” (p. 96)

Seria interessante ler uma análise do romance do ponto de vista feminista escrita por uma mulher, ou uma assistente social, uma vez que a violência existe também contra as crianças. O protagonista não pensa duas vezes  antes de descontar sua raiva nos filhos, mais precisamente em Nwoye, o filho mais velho, de doze anos, que a seu ver, tem tudo para ser como o avô. A brutalidade paterna utilizada por Okonkwo como principal método de educação, como poderíamos esperar, não faz nenhum bem à saúde mental do filho. Logo, foi com uma estranha satisfação que recebi a informação de que com a chegada dos colonizadores europeus, Nwoye não pensou duas vezes em se converter ao cristianismo e abandonar o pai para viver com os cristãos, sendo rebatizado como Isaac, e posteriormente, virando um competente professor. Aliás, foi curioso que a filha preferida do protagonista, Ezinma não tenha buscado o mesmo caminho do irmão, uma vez que o pai não escondia o desgosto por a filha não ter nascido homem.

Fonte: The Paris Review

Portanto, levando em consideração essa busca incessante dos homens da tribo por uma masculinidade bruta e problemática, não é de se estranhar que essa virilidade desenfreada tenha sido o principal motivo da queda daquela civilização. Os homens de Iguedo respondiam as tentativas de contato dos padres com carnificina, decapitações e enforcamentos, e os padres, por sua vez, atraíam os moradores já desgastados com a virilidade de Okonkwo com promessas de educação e uma exploração de uma nova religião. De pouco a pouco vários membros daquela comunidade preferiram viver junto do colonizador do que ao lado dos próprios amigos e familiares.

O mundo se despedaça poderia ter esse título graças ao homem branco que chega sem ser convidado e acaba com a paz e a harmonia de um povo simples — e esse foi o primeiro dos meus pensamentos quando os europeus foram introduzidos na história —, mas devido à curiosa opção de Achebe de retratar os colonizadores europeus não como os sanguinários estupradores que foram, mas sim como padres velhinhos e educados, fica praticamente impossível de entendê-los como os vilões da história de Okonkwo. Dessa forma, neste livro o monstro não é o colonizador, mas sim a própria masculinidade.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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