Bom humor e assassinato em “Blanche em apuros”, de Barbara Neely

Barbara Neely nasceu na Pensilvânia em 1941 e ficou conhecida mundialmente por ser uma ativista e autora de romances policiais pautados pelo bom humor e por comentários sociais, sendo Blanche em apuros, publicado no Brasil pela Darkside em 2022 (com tradução de Dandara Palankof), o primeiro de uma série de 4 romances protagonizados por Blanche White, uma mulher negra e retinta de quarenta anos que investiga — de forma amadora — casos de assassinatos nas casas luxuosas onde trabalha como empregada doméstica.

Como não adorar o brilhantismo da autora ao batizar sua protagonista, uma mulher negra e retinta, com um nome que significa branco em dois idiomas? Em outras palavras, Blanche White é uma espécie de Miss Marple — velhinha branca e bisbilhoteira que protagoniza 12 romances e 20 contos escritos por Agatha Christie —, mas com uma diferença fundamental: os recortes de feminismo negro, raça, classe e referências de cultura pop negra que, por razões óbvias, são inexistentes nos romances da autora inglesa.

Diferentemente de obras de autores clássicos do noir como Chester Himes, Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Walter Mosley — contemporâneo e uma das inspirações de Neely —, em que a ambientação das tramas, que geralmente não faziam sentido algum, aconteciam em ruas sujas, becos escuros, bares ilegais repletos de ladrões, homossexuais, gângsters e femme fatales —, Blanche em apuros, publicado originalmente em 1992, possui a característica clássica dos romances “Whodunnit”, outro famoso gênero de romances policiais. Ou seja: descobrir a identidade do assassino e ter uma trama coesa e bem amarrada são detalhes importantes no gênero.

Mas o que é “Whodunnit”?

Podendo significar simplesmente “Quem é o culpado?”, ou “Quem fez isso?”, esse estilo de romance teve seu auge entre as décadas de 20 e 50, sendo aqueles protagonizados por Miss Marple, Hercule Poirot e Sherlock Holmes, entre outros, os mais famosos. Basicamente, como é sabido, essas histórias eram sempre escritas por pessoas brancas, eram protagonizadas por personagens brancos e quase sempre, com raras exceções, aconteciam em cruzeiros, hotéis de luxo ou casas de campo de milionários brancos, sendo que em determinado momento, algum personagem aparecia morto e um detetive era enviado para investigar o caso, até que, no terceiro ato da narrativa, após finalmente descobrir o culpado, ele reunia todos os suspeitos e fazia um longo monólogo expositivo para situar o leitor e os personagens sobre da resolução do caso. Nesses casos, os personagens negros eram sempre serviçais, ladrões, criaturas exóticas de outros países, ou, na melhor das hipóteses, uma versão pouco trabalhada de Sam, o pianista de Casablanca.

Na trama de Blanche em apuros, que funciona como uma história de origem da carreira amadora de Blanche White, acompanharemos a protagonista, que após ser presa por passar cheques sem fundo para cuidar de seus dois sobrinhos, consegue escapar, mas é perseguida pela polícia. Sem opção, ela decide usar sua invisibilidade quádrupla — como mulher, negra, gorda e doméstica — a seu favor, e começa a trabalhar na casa de uma família rica que está prestes a levar uma tia milionária para uma temporada em sua imponente casa de campo. Neely, através de sua protagonista, brinca com as expectativas dos brancos para com o estereótipo da Mammy, e é curioso ver como Blanche parece usar o estereótipo como uma armadura para evitar qualquer tipo de suspeitas — algo parecido acontece no romance A Balada do Black Tom, de Victor LaValle, quando o protagonista finge ser sem educação e simplista perto de brancos, para os enganar. Como era de se esperar, na trama de Blanche em apuros vários personagens começam a morrer em circunstâncias estranhas, e Blanche, na base da curiosidade e do conhecimento adquirido ao passar décadas em bibliotecas de pessoas brancas e ricas, vai tentar solucionar os crimes para que ela mesma não acabe sendo acusada e volte para a prisão.

Além de Blanche, os outros personagens do romance são: Emmeline, a tia branca milionária à beira da morte; Mumsfield, sobrinho branco de Emmeline de 25 anos portador de Síndrome de Down com quem Blanche cria uma relação de afeto, compaixão e identificação; Grace, prima de Mumsfield, dona de casa submissa e frágil; e Everett, seu marido impecavelmente bem-vestido e misterioso. Esses, claro, são brancos. Ainda estão na trama: Nate, o jardineiro negro da família, que no passado foi salvo por Grace de um linchamento, e por isso finge ser fiel à patroa; e Archibald, um advogado branco de meia idade primo da família. Como ficou claro, todos os personagens possuem motivo para matar uns aos outros por causa da herança e nós nunca sabemos quais deles estão falando a verdade até chegarmos ao clímax do romance. Os personagens de Blanche em apuros, como não poderia deixar de ser neste tipo de romance, possuem passados obscuros que envolvem acidentes inexplicáveis de pessoas próximas e são todos escritos para parecerem suspeitos, e assim contribuir para que a trama contenha uma quantidade relativamente grande de possíveis assassinos, transformando a leitura em uma jornada de investigação para Blanche e por conseguinte, nós, os leitores.

Mas não é apenas suspense que o leitor encontrará no romance. Em certos momentos, por exemplo, Blanche em apuros é um livro que nos faz pensar sobre a conexão que é criada entre pessoas que sofrem com o trauma do abandono e da invisibilidade. É tocante o modo como a relação entre Blanche e Mumsfield cresce através de suas histórias de abandono e invisibilidade na sociedade: Blanche enquanto mulher e empregada doméstica negra, e Mumsfield, devido à Síndrome de Down em uma família de pessoas ricas que o tratam como serviçal. Não á toa, ele é o encarregado de dirigir a limusine da família, criando um paralelo com a profissão de motorista, que como sabemos, é exercida historicamente — na ficção e na vida real — por homens negros. Ambos Blanche e Mumsfield são vistos pela sociedade não como pessoas, mas como objetos descartáveis, ou como dispositivos para mover tramas de livros, filmes e produções artísticas das mais variadas áreas.

A invisibilidade como trunfo

É interessante analisar a invisibilidade de Blanche por um recorte de raça que funciona a seu favor na narrativa. Essa invisibilidade acaba tendo duas funções principais: primeiro, funciona como um contraponto entre ela e os detetives brancos e imponentes de outros romances já consagrados, visto que naqueles casos, suas reputações e proezas funcionavam como uma espécie de alerta entre os suspeitos; segundo, a camuflando no ambiente doméstico, e assim podendo despistar policiais e detetives à sua procura, visto que aos olhos dos brancos, as empregadas domésticas negras eram todas iguais — e o modo ao mesmo tempo sarcástico e denunciador que Neely escreve essa discussão é brilhante. É sintomático, aliás, o fato de que Blanche convence seus patrões de que já trabalhou para eles naquela casa sem nunca ter colocado os pés naquele bairro anteriormente. Em determinado momento, aliás, Blanche pensa com um misto de tristeza e apreensão em todas as mulheres negras que serão abordadas, presas e provavelmente violentadas pelos policiais que estão à sua procura simplesmente por terem o seu biotípico físico.

Neely também usa a condição de fugitiva de Blanche para comentar sobre o tratamento que outras mulheres negras receberam da mídia e da sociedade norte-americana em um período não muito distante ao serem consideradas terroristas e procuradas pelo FBI por crimes que não cometeram, entre elas Angela Davis, Assata Shakur e Joanne Little, que foi a primeira mulher na história dos Estados Unidos a ser inocentada em um julgamento por assassinato ao matar um guarda penitenciário branco que tentou estuprá-la — acontecimento histórico que dialoga diretamente com o passado de um personagem chave no romance.

Sobre a estrutura, a autora divide a trama em três atos bem estabelecidos, além de usar e abusar de comentários sociais e históricos, e de divertidas referências da cultura pop e negra dos anos 90 enquanto navega de forma orgânica pelo background de cada um dos personagens, nunca os transformando em figuras unidimensionais. Como espero estar deixando evidente neste texto, a estreia de Neely na ficção veio carregada de uma importante carga racial e política, apesar de que ao menos na superfície, o romance seja mais pautado pelo estilo leve e bem-humorado de escrita. E é nesse aspecto que o romance tem seus melhores momentos.

De modo paradoxal essa atenção durante a criação dos personagens também acaba se tornando um ponto negativo em vários momentos, principalmente pelo tempo usado pela autora para estabelecer o ambiente e a conexão entre os personagens. Por tratar-se de um livro relativamente curto existe uma incômoda lentidão na narrativa, já que nada realmente importante acontece até as últimas 50 páginas, e mesmo assim, quando o impressionante plot twist acontece e o assassino é revelado, o acontecimento perde sua força, quase que se transformando em um anti-clímax graças ao modo nada orgânico que Neely decide estruturar os eventos. Neely ainda cai na armadilha do gênero “Whodunnit” ao escrever um longuíssimo diálogo expositivo que se prolonga por nada mais nada menos do que 11 páginas em que acompanhamos o assassino revelar todo o seu plano e suas motivações para Blanche. Em outras palavras: Neely simplesmente não confiou em seu público e decidiu mastigar toda a resolução da trama. A única diferença de Blanche em apuros em relação aos típicos romances “Whodunnit” é que aqui quem faz o monólogo não é o detetive, mas sim o próprio assassino enquanto assume seus crimes — decisão que apesar de ser diferente do comum, é questionável, já que tira o protagonismo de Blanche White nas últimas páginas, o deixando para outra personagem. De qualquer forma, a sequência posterior ao longo diálogo é de tirar o fôlego e merece aplausos pela engenhosidade e pelo uso do espaço — físico e textual — usando por Blanche e Neely, respectivamente.

Em última análise, apesar de não ser um romance regular, Blanche em apuros possui seus méritos por trazer para a frente da narrativa o arquétipo de personagens que até então — na literatura e principalmente na vida real — eram ignorados. O romance possui seus melhores momentos quando Neely faz comentários raciais e sociais, mas enfraquece no quesito suspense em sua segunda metade. De qualquer forma, e com méritos incontestáveis, Blanche se transformou em uma das personagens literárias mais queridas entre o público negro da época, e com o sucesso de Blanche em apuros, Barbara Neely publicou mais 3 romances protagonizados por Blanche White: Blanche Among the Talented Tenth, em 1994, Blanche Cleans Up, em 1998, e Blanche Passes Go, em 2000. Todos ainda sem tradução no Brasil.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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