“Em busca da África”, de Manthia Diawara, e o retrato de um continente possível por meio da narrativa de retorno

O imaginário em torno do continente africano é algo que, não raro, chama atenção. De outros tempos, quando se parecia que tudo o que era possível confabular a respeito da região era miséria, violência e atraso, aos dias de hoje, quando a romantização em seu entorno nos faz acreditar em um território onde só há espaço para maravilhas, que espera por nosso retorno de braços abertos, sendo berço de uma realeza onipresente da qual muitos de nós descendemos. Perspectivas como essas partem de um mesmo lugar que não nos permitem olhar para o continente com o devido cuidado, buscando compreender as suas complexidades e (re)conhecer, de fato, a sua diversidade. Na prática, é como se apenas gritassem aos quatro ventos que não, a África não é um país, mas agissem como se no final das contas fosse, sim. Publicado originalmente em 1998, Em busca da África (2022, Zahar; tradução de Denise Bottmann), do cineasta, crítico de arte e professor de estudos africanos e literatura comparada, Manthia Diawara, é um trabalho que nos ajuda a desmistificar muito do que apenas se supõe em relação ao continente, mas vai além, também contribuindo para uma melhor compreensão do que é o sujeito negro no mundo. 

Nascido em Bamako, no Mali, Diawara passou sua infância na Guiné, antes de ser obrigado, junto de sua família, a sair do país. Em busca da África nasce a partir do momento em que, já morando nos Estados Unidos, o autor decide voltar à Guiné, 32 anos após sua partida, com o intuito de iniciar uma pesquisa que culminaria em um documentário a respeito da vida de Sékou Touré, personagem histórico com quem acredita ter sua vida intimamente ligada. Porém, não é só isso que o motiva retornar à terra de sua infância: Diawara também anseia por reencontrar Sidimé Laye, amigo querido cuja distância e o tempo o fizeram perder o contato. 

Esse toque pessoal e biográfico é elemento essencial na construção de Em busca da África. Manthia Diawara opta por compor seu livro por duas vias que vão na mesma direção: uma, como já mencionado, segue nessa pegada intimista, na qual o autor compartilha causos de sua vida de maneira romanceada – o que faz da leitura mais fácil e fluida; na outra, a sua escrita é mais próxima da acadêmica, realçando o seu caráter ensaístico, o que, por tabela, revela a faceta crítica do autor. A leitura neste caso se torna mais densa. É uma escolha curiosa. Sobretudo, porque a diferença no registro se faz perceptível. Contudo, vale o reforço: ambas as vias perseguem o mesmo resultado, que é refletir a respeito de uma África tangível e não idealizada. 

O compromisso que Diawara tem com o factual é uma das forças de seu livro. É interessante ver como ele reage quando a sua percepção a respeito de algum assunto é confrontada. Em alguns momentos parece haver alguma resistência, mas o mais comum é ele se permitir à reflexão. É o que acontece, por exemplo, com a imagem de Sékou Touré, ex-presidente da Guiné, que por muito tempo fora seu herói – e também responsável pelo exílio de sua família. Ao ser exposto a diferentes opiniões a respeito dele – que em duas ocasiões ocorrem por meio de dois personagens muito interessantes e que protagonizam alguns dos melhores momentos do livro, sendo eles o motorista Cémoko e o escritor Williams Sassine –, Diawara o tira do altar e se permite a ouvir e, com isso, ponderar. Na verdade, o seu próprio senso crítico já o faz perceber Sékou Touré de outra maneira. O mesmo acontece com outras situações, como quando o tão esperado reencontro com seu amigo, Sidimé Laye, enfim acontece e ele se depara com algum obstáculo para entender que a maneira como ambos encaram o mundo se tornou bem diferente uma da outra. Contudo, são graças a esses embates, se assim podemos chamar, que o autor tem a possibilidade de desenvolver parte das ideias que compartilha conosco. 

A porção mais ensaística de Em busca da África traz comentários bem interessantes. Manthia Diawara não se furta de examinar a fundo questões que tanto lhe inquietam quanto as que apenas se apresentam diante de si. E com isso, temos ótimas análises como as que faz em torno das questões que permeiam os discursos conversionistas e culturalistas negros e como eles se entrelaçam com a política e a economia. E isso a partir de A autobiografia de Malcolm X, de Malcolm X e Alex Haley. O mesmo acontece quando se propõe a examinar a pretitude, cultura negra e a África moderna a partir do que pensaram James Baldwin, Léopold Sédar Senghor e Richard Wright. Esse é um dos grandes momentos do livro, no qual Diawara é dedicado a ir nas minúcias das ideias, polêmicas e contradições desses autores ao pensar as subjetividades negras e o imaginário em torno do continente africano.

Contudo, um grande trunfo desta edição de Em busca da África está no prefácio escrito pelo próprio Diawara especialmente para os leitores brasileiros. Nele, o autor já abre dizendo que

“a África, no mundo moderno, fica em toda parte; no Brasil, no Haiti, em New Orleans, assim como na Europa e na Ásia. E às vezes, aquilo que chamamos de espiritualidade africana, de humanismo africano, a maneira africana de se relacionar com o ambiente — ou, em termos simples, a tradição africana —, está mais viva nesses lugares do que em muitas regiões do próprio continente africano”.

Revelando também como se sentia insatisfeito com a “África a-histórica” que lhe era apresentada pelo movimento da Negritude e ramificação afrocentrista a qual era exposto nos Estados Unidos. Para ele, voltar à África

“é abraçar a pretitude, em todas as suas diversas manifestações, retirando-a do espaço patológico que lhe foi reservado pelas culturas dominantes do esclarecimento e do eurocentrismo. Voltar à África é abraçar as diferenças como iguais e igualmente constitutivas de nossas humanidades, em vez de escolher um modelo de ser como a imagem que deve ser imposta a todos os homens, Voltar à África, mais do que uma volta literal a um continente chamado África, é uma metáfora de ser negro no mundo moderno.” 

Ainda neste prefácio há um subcapítulo intitulado “Em busca do Brasil”, no qual Manthia Diawara fala de suas relações com o país, que se iniciara de forma mais mítica do que real, tal qual muitos aqui – e em outros lugares – se relacionam com a própria África. Isso se deu muito por influência do cinema e do futebol com a sua admiração por Pelé, Garrincha e Rivelino. Esse imaginário estereotipado acerca do Brasil só viera mudar quando Diawara já se encontrava no seu doutorado nos Estados Unidos, cujo contato com colegas brasileiros fora imprescindível para que a sua percepção do país se transformasse. Ele cita nominalmente a imensurável Leda Maria Martins, quem diz ter sido a sua primeira amiga brasileira, e o mestre Abdias Nascimento, cujo o encontro foi de extrema importância, o fazendo perceber que “ele era para o Brasil o que Césaire era para Martinica, Alioune Diop para París, Nicolás Guillén para Cuba e Langston Hughes ou Du Bois para os Estados Unidos”. Fala também da sua primeira vinda ao Brasil, facilitada pelo “gigante da cultura preta brasileira” Zózimo Bulbul, na qual relata um encontro emocionante como Joel Zito Araújo. A admiração de Diawara pelo Brasil é evidente, e este prefácio à edição brasileira de Em busca da África só enriquece a obra.

Manthia Diawara
Imagem: Divulgação

Como o próprio Manthia Diawara comenta no livro, parte de sua intenção com Em busca da África é a de superar o afropessimismo (que ele comenta mais abertamente ao tratar de seu encontro com Sassine). E é o que ele faz ao contrapor as idealizações em torno dessa “tradição africana” com um olhar crítico de quem conhece com intimidade a terra onde põe seus pés. Sua postura é a de alguém que busca na honestidade elementos que nos levem à verdadeira modernidade africana sem fugir de toda complexidade e dilemas que lhe pertencem. Sua experiência acadêmica lhe permite se voltar para a política, o debate social e às manifestações culturais e artísticas como o cinema, a música e a literatura com desenvoltura e rigor, ajudando a montar um mosaico mais fidedigno do que é esse continente tão diverso e plural.

Em suma, Em busca da África é um documento indispensável a todos aqueles que querem de fato conhecer um pouco mais desse lugar maravilhoso, mas sem cair nas fantasias inverossímeis que são tão contumazes. Tudo isso a partir da perspectiva de um intelectual que conseguiu construir uma narrativa de retorno que nos parece ter sido muito bem sucedida.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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