História da Sexualidade: O uso dos prazeres (Vol. 2) – Michel Foucault

Texto por William Alves

“[…] aos seus olhos, o que fazia com que se pudesse desejar um homem ou uma mulher era unicamente o apetite que a natureza tinha implantado no coração do homem para aqueles que são belos, qualquer que seja o sexo.” – Michel Foucault.

Foucault pretendia se dedicar ao aspecto recente e cotidiano da sexualidade, entretanto o termo “sexualidade” surgiu somente no início do século 19, logo, ele se sentiu obrigado a modificar sua ideia inicial e retornar à Antiguidade grega para tentar descobrir o motivo pelo qual o desejo sexual passou a ter conotações negativas e deixou de ser considerado uma prática não só comum, mas também indicada entre homens e rapazes.

O autor redireciona seu foco e passa a analisar o que era conhecido como “progresso” do conhecimento: o saber, o poder, o sujeito, e finalmente, a história do desejo. O que move o desejo adiante é sempre a curiosidade; não uma curiosidade comum, que desaparece no momento em que é saciada, mas sim um tipo de curiosidade poderosa, que proporciona tanta excitação que “separa o indivíduo de si mesmo”: uma curiosidade que nos faz pensar nossa própria história de modo a nos liberarmos da vergonha de “pensar silenciosamente”.

Eventualmente, a mudança na aceitação do desejo sexual chega com o cristianismo, e assim o autor passa a estudar os motivos pelos quais a sexualidade começa a ser problematizada, e por qual razão os prazeres a ela relacionados são mais importantes do que outros setores, entre eles a pobreza, a alimentação, e principalmente, por que e sob qual forma a sexualidade passa a ser considerada como “campo moral”. Então, ao longo das 300 páginas seguintes ele se dispõe a descobrir onde a problematização do sexo se forma, e com isso, as subcategorias:

• O uso dos prazeres: estudo sobre o desejo desde a antiguidade clássica até os primeiros séculos do cristianismo, usando como base textos de filósofos e médicos gregos do século 5 AC.
• O cuidado de si: estudo sobre as noções do autocontrole sexual até os primeiros séculos da era moderna.
• As confissões da carne: estudo sobre a formação e a doutrina pastoral sobre os prazeres carnais.

A partir dessas três subcategorias somos apresentados às diferenças entre a moral sexual cristã e a moral sexual do paganismo antigo; as noções sobre o valor do próprio ato sexual ao ser entendido como pecado, ao ser relacionado com a morte, e ao deixar de ser entendido como algo positivo, quando inicia-se o conceito de “fidelidade” e de relacionamentos monogâmicos: o sexo passa a ser aceito e incentivado somente para a procriação; e as relações entre homens e rapazes que eram até então exaltadas e passam a ser rigorosamente excluídas com o cristianismo. Podemos concluir que em sua maioria, os gregos eram indiferentes a conceitos como a natureza do ato sexual, fidelidade e monogamia, castidade e relações entre homens, ainda que essa última (homens velhos e da mesma idade) fosse vista como anormal em alguns casos.

Foucault passa a discutir conceitos como Medo, Esquemas de Comportamento, Imagem, Modelo de Abstenção, Moral e a Pratica de si, e Moralidade dos Comportamentos. Em textos escritos no primeiro século de nossa Era são encontradas as obsessões da medicina dos séculos 17 ao 19 sobre o medo e o perigo do sexo desenfreado (a masturbação aqui incluída), o enfraquecimento da alma, morte, o esgotamento progressivo e até mesmo a destruição da raça. Em Esquemas, o destaque fica para uma analogia que usa o autocontrole e a fidelidade dos elefantes “que só fazem sexo para procriar, uma vez a cada 3 anos, e sempre, exclusivamente com a mesma fêmea”. Já em Imagem, detalhes corporais como traços do rosto, postura corporal, e a delicadeza passam a ser vistos negativamente com a criação do termo “homossexualidade” no século 19. O conceito de “herói virtuoso” é apresentado em Abstenção para exemplificar indivíduos que de tão seguros do seu autocontrole são considerados as melhores opções para comandar cidades, exércitos, etc, provando que essa relação entre abstinência e sabedoria espiritual já estava fortemente marcada e que embora esses termos pudessem estar presentes no cristianismo e paganismo grego, eles nunca possuíam o mesmo valor.

Em Prática do Ser, Foucault se propõe a analisar a moral, suas formas e transformações, sua ambiguidade, assim como os princípios que cada indivíduo obedeceria ou ignoraria. O autor chama esse processo de “Moralidade dos Comportamentos”, mas deixa claro que por dentro dessa moralidade é preciso entender a “regra de conduta” e como medir essa regra, porque é preciso conduzir-se, ser entendido como “eu”, como sujeito moral, e perceber que existem várias formas de praticar essa austeridade sexual. Essas diferenças formam a “Determinação da Substância ética”, ou mais precisamente, como devemos transformar parte de nós mesmos em uma matéria principal de nossa conduta, pois só então conseguiremos entender porque determinado indivíduo se reconhece como ligado e obrigado a seguir regras de moralidades como Fidelidade Conjugal (fazer parte de um grupo social e ser aceito nesse grupo) e Herdeiro Espiritual (a fidelidade foi ensinada e precisa ser passada para a próxima geração).

Desse modo, podemos concluir que de acordo com as ideias iniciais de Foucault, quem provocou essa codificação moral foi, em certo grau, o sistema penitencial no início do século 8 até seu desenvolvimento na Reforma, porque como sabemos, na Antiguidade grega os homens eram guiados pela própria vontade, e não por um código que ditava o que era ou não permitido, uma vez que a ligação do sexo com o pecado ainda não existia.

 

No primeiro capítulo, “A problematização moral dos prazeres”, Foucault analisa os traços das doutrinas filosóficas que do século 5 até o 8 se fixarão na ideia de prazer geral versus prazer sexual, como, de certo modo, os gregos aceitaram muito mais os comportamentos sexuais do que os europeus do período moderno, ou os cristãos da idade média, e de como comportamentos atualmente considerados homossexuais, naquela época não eram causadores de quase nenhum tipo de escândalo. Ele utiliza textos, entre eles de Xenofonte, Aristóteles e Platão para elaborar um longo estudo sobre a moral sexual e as estruturas do prazer sexual, e com isso nos apresenta a Aphrodisia (substância ética), Chresis (O tipo de sujeição ao qual o prazer sexual deveria obedecer para ser aceito moralmente); a Enkratéia (o entendimento de si mesmo enquanto sujeito moral) e Sophrosune (a realização do sujeito moral).

Diferentemente do Cristianismo, nos Aphrodisia (literalmente: Atos de Afrodite) não existia um quadro, uma lista com o que era proibido e imoral. Os Aphrodisia são gestos e atos que geram algum tipo de prazer, e que não estão em hipótese alguma interessados ou preocupados pela forma em que o prazer sexual é obtido, nem o gênero do parceiro, e sim pela intensidade e a frequência dos atos em si. Em outras palavras: o excesso e a luxúria eram entendidos como uma doença corporal, e não relacionados a má vontade da alma, logo, não poderiam ser considerados como um problema. “Como limitar e regular a atividade sexual?” Com essa pergunta o autor direciona seu foco a Chresis: para exemplificar como o indivíduo se conduz moralmente, as condições de seus atos sexuais, e a sua importância em sua vida. Assim como os Aphrodisia, o gênero do parceiro aqui continua sem importância, a diferença está nos cuidados, na reflexão que cada um faz dentro de si, e antes de cada ato ao ser guiado pela Necessidade (o estudo sobre o apetite sexual), o Momento Oportuno (o mais delicado dos estudos na arte do prazer, é dedicado a “como e quando” o prazer é conveniente), o Status Social (desejo sexual entre pessoas do mesmo poder aquisitivo ─ uso aqui um termo atual); os Enkratéia (o estudo sobre os aspectos históricos sobre a moral de “comandar a si mesmo”, de ser o dono dos seus prazeres e saber resistir as tentações), e finalmente, os Sophrosune (estudo sobre a arte de se tornar livre de qualquer prazer relacionado com a carne).

 

Mesmo que repetitiva em alguns detalhes (o autor escreve sobre as mesmas coisas de uma forma diferente, muitas vezes, inclusive dentro do mesmo capítulo), essa parte é rica em informações que se relacionam com a atualidade, como podemos observar quando Foucault usa exemplos de líderes que são inaptos a comandar uma cidade, pois não conseguem controlar a si mesmos. E aqui uso o próprio cenário político atual como exemplo: como podemos esperar que um presidente consiga comandar o país sendo que ele não consegue comandar a própria quadrilha?

Chegamos à ideia central dos Sophrosune: o homem precisa saber seus limites, se conhecer profundamente, e saber que amar os dois sexos não é errado, errado é ser passivo em relação aos prazeres. Errado é ser incapaz de ser viril consigo mesmo.

 

Ao analisar a Dietética, Foucault faz um extenso estudo sobre a relação da dieta e do regime, assim como os exercícios físicos, desejo sexual e como a fome sexual pode atrapalhar (ou ajudar) no momento da procriação, e em certas ocasiões, causar até mesmo a morte. O fato é que por mais interessante que seja ler 80 páginas sobre a dieta de jovens gregos (e é!), escolho aqui fazer uma ligação direta de todo o conteúdo da Dietética com a ditadura da magreza e o culto do corpo sarado perfeito que vivemos atualmente. Crescemos sendo bombardeadospela mídia e pela sociedade, somos condicionados a acreditar desde criança que o corpo só é digno de amor e afeto se ele se encaixar naquele padrão. Ao atingirmos a adolescência aprendemos que não só seremos privados do afeto, como também seremos sexualmente indesejáveis, uma vez que não somos parte desse seleto grupo (seja por opção ou problemas relacionados a distúrbios alimentares, que por sua vez, são geralmente criados pela pressão da busca pelo corpo perfeito). E uma vez que o sexo entre homens era tão comum na época fica praticamente impossível de não relacionar o estudo com a atual ditadura do corpo perfeito dentro da comunidade LGBTQIA+, especialmente entre homens gays, pansexuais e bissexuais, e assim perceber que a insegurança com o próprio corpo não é algo exclusivo do século 21. Sabemos como nós somos pressionados em dobro a atingir o inatingível o corpo sarado dos gladiadores, literalmente de deus grego, para sermos dignos de amor dentro de nossa própria comunidade. Ou seja: sofremos bullying enquanto nossa sexualidade está sendo formada, e já adultos temos que lidar novamente com o desprezo, mas dessa vez de quem supostamente deveria nos trazer um sentimento de conforto e pertencimento.

Na Econômica, Foucault redireciona seu foco aos textos filosóficos da época para descobrir em que período da história as relações sexuais entre marido e mulher, assim como o conceito de traição, passam a existir e então constituir-se como um problema. Durante várias páginas, e novamente com certa repetição dispensável, ele aborda como a problematização não ocorre por causa da poligamia e sim pela obrigação monogâmica. Monogamia essa obrigatória apenas para a mulher, já que apenas ela era punida em casos de traição (aparentemente o motivo para essa lei se deu pelo fato de que de acordo com a sociedade grega, quando a mulher se casa deixa de viver na casa do pai e passa a morar na casa do marido, logo, ela não é a dona do lar, apesar de ser quase que exclusivamente tratada assim pela sociedade desde então. A mulher pertence ao marido, e esse pertence a si mesmo). 

Na Erótica, Foucault dedica um capítulo inteiro ao estudo da relação entre homens e rapazes. Não obstante, presenciamos o nascimento do termo “homossexual”, assim como podemos perceber que os conceitos de homossexualidade, pansexualidade e bissexualidade estavam prestes a serem descobertos, ao mesmo tempo em que [não] existiam em uma área nebulosa na sexualidade greco-romana.

“[…] aos seus olhos, o que fazia com que se pudesse desejar um homem ou uma mulher era unicamente o apetite que a natureza tinha implantado no coração do homem para aqueles que são belos, qualquer que seja o sexo”. Embora o autor utilize o termo “homem” no início dessa citação, o ideal seria “rapaz”, assim como ele faz no restante do texto, pois fica claro que a relação entre dois homens velhos e da mesma faixa etária não era igualmente bem aceita como eram as relações entre homens e adolescentes. De forma curiosa, assim como podemos entender que o culto ao corpo perfeito teve sua origem na antiguidade grega, o preconceito atual que rapazes afeminados sofrem dentro da comunidade gay também pode ser entendido assim, já que Foucault usa exemplos da literatura grega em que jovens afeminados eram vítimas de abuso, piadas e preconceito por não serem masculinos o bastante, e mesmo que a relação entre homens e rapazes não fosse oficialmente reconhecida perante a lei, assim como era o casamento entre marido e mulher, o rapaz só poderia ser abordado se demonstrasse interesse pelo homem mais velho. Em outras palavras: ele precisava ser carinhosamente conquistado, e, principalmente, dar consentimento aos avanços sexuais do homem que o desejava, homem esse que na maioria das vezes era casado, e sua mulher era tratada em casa como um objeto, como uma propriedade, sendo sujeita ao que hoje é conhecido como estupro marital, já que não possuía voz dentro do casamento e era destinada a procriação. E aqui fica praticamente impossível não pensar no conceito da “Mulher Domesticada” de Gayle Rubin.

Focault usa a ideia de “A honra do rapaz” e “Amor verdadeiro” para finalizar seu extenso trabalho. Ele analisa o caráter confuso da relação do jovem grego enquanto sujeito sexual, desde adolescência, quando se era permitido ser passivo sexualmente (mas sem ser afeminado) sem receber olhares de reprovação da sociedade, ao mesmo tempo em que não podia explorar sua sexualidade de modo mais faminto, digamos assim, pois corria o risco de décadas depois, já adulto, ter seu passado submisso usado contra ele ao tentar algum cargo político de importância. De certo modo, só lhe era permitido ser uma presa sexual na juventude, pois ele não possuía nenhum status social.

É impossível não perceber a ausência da sexualidade feminina, e para um longo estudo intitulado “A História da Sexualidade” a mulher aparecer somente como objeto é realmente sintomático se pensarmos como ela sofre com a objetificação de seu corpo ao longo dos séculos. Sabemos, entretanto, que a sexualidade da mulher na antiguidade grega, principalmente a homossexualidade, é praticamente ausente na literatura. Fica impossível não usar suas próprias palavras contra ele mesmo: “Trata-se de uma moral de homens: uma moral pensada, escrita, ensinada por homens, e endereçada a homens, evidentemente livres.”

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*Livro recebido em parceria com a editora.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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