Crime do Cais do Valongo (editora Malê, 2018), de Eliana Alves Cruz, é um romance que se passa no período colonial, em um Rio de Janeiro do século 19. A narrativa acontece de modo intercalado pelas vozes de Nuno Alcântara Moutinho, que é um mulato filho de pai português e mãe negra, e Muana Lòmué, africana escravizada, advinda de Moçambique.
Logo de início sabe-se que no Cais do Valongo aconteceu um crime: o homicídio de Bernardo Lourenço Vianna, um dono de hospedaria em ascensão social. Este crime é investigado pelo Intendente-Geral de Polícia, que também era primo da vítima, Paulo Fernandes Vianna.
Os primeiros suspeitos são os escravizados que pertenciam ao morto: Muana, Roza e Marianno. Estes dois últimos, apesar de não terem muita voz na história, possuem uma identidade bastante definida, o que faz com que suas habilidades manuais, ela com a comida e ele com a costura, sejam um fator importante no desenrolar da história. Nuno, suspeito em potencial de ter cometido o crime por ter uma dívida com o morto, se aproxima do intendente-geral para estar mais próximo das informações que aquele descobria, enquanto, por conta própria, também empreende as suas.
Muana, que sabe ler e escrever, mas como forma de proteção esconde isso de seu senhor, escreve sua história de vida. Ela narra os relatos que contou para um advogado inglês que estava interessado em reunir testemunhos de escravizados para ajudar a acabar com a escravidão. Enquanto Muana conta sua vida para o advogado inglês, o leitor acompanha a narrativa e este é um recurso muito bem utilizado pela autora porque economiza espaço e a leitura desperta ainda mais interesse na medida em que vamos conhecendo como havia sido a vida de Muana em Moçambique e tudo que ela passou até chegar ao Brasil.
A autora. Foto de Custódio Coimbra. Fonte: Jornal O Globo. |
O livro tem como ponto forte usar o crime como pano de fundo para levar o leitor a conhecer a época e seus costumes. Além disso, traz informações preciosas sobre as atividades exercidas no Cais do Valongo, local onde os trazidos da África aportavam e eram separados para venda.
A resolução do homicídio ganha uma justificativa que pode ser interpretada como realismo fantástico por conta dos acontecimentos sobrenaturais, revelando que ninguém ali é o que parece ser, mas uma outra interpretação é que estes acontecimentos estão ancorados em uma cultura ancestral que nós, como brasileiros, pouco conhecemos.
Acho que muito do que este livro expõe sobre a realidade dos escravizados vai em consonância com o que é exposto no romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves e pode mesmo funcionar como leitura complementar, com a diferença de que um é situado em Salvador enquanto o no Rio de Janeiro.