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Feminismo Não-ficção Transfeminismo

A revolta de Fray Baroque e Tegan Eanelli em “Bash Back! – Ultra violência queer”

Correndo o risco de usar uma analogia que não seria aceita por Fray Baroque e Tegan Eanelli, editoras do revolto Bash Back! – Ultra violência queer (publicado em 2020 pela N-1 Edições), anárquico e apropriadamente batizado de livro-monstre, ouso relacionar o efeito da antologia em nossa mente com o que acontece quando A Noiva recebe uma injeção de adrenalina em Kill Bill. A cada ponto, a cada frase, a cada parágrafo, a cada página somos colocados contra a parede com uma faca no pescoço por textos que nos questionam: você vai fazer parte da nossa Anarquia Queer ou vai ficar ao lado da opressão e do capitalismo? Os textos que fazem parte dessa antologia são polêmicos e nos fazem sentir uma sede por mudança, vingança e violência. 

Formada nos Estados Unidos em 2007, a Bash Back! foi uma rede de levantes descentralizados focada no transfeminismo insurrecional que buscava facilitar a convergência de ativistas radicais trans, não-bináries e gays de todo o país, ao mesmo tempo em que criticava a ideologia do movimento LGBTQIA+ popular, que o grupo via como uma assimilação às instituições dominantes de uma sociedade cisheteronormativa e capitalista. Um exemplo claro não é apenas é o fato do exército, da marinha e da aeronáutica norte-americana aceitarem pessoas queer, mas sim uma pessoa que, fazendo parte de um grupo que é historicamente vítima de opressão, aceite fazer parte de uma organização historicamente opressora, que bombardeia e mata cidadãos de outros países. O Bash Back! foi claramente influenciado pelo movimento queer radical que contava com grupos como o ACT UP, e inspirado na Revolta de Stonewall, que foi o berço do nascimento da luta pelos direitos LGBT (conhecido então como apenas GLS) no final dos anos 60, liderados por Martha P. Johnson e Sylvia Rivera.

Traduzido de forma primorosamente inclusiva por Pontes Outras, abraçando a linguagem atual, os textos funcionam como uma porta de entrada para o futuro que está a cada dia mais presente: a normalização da linguagem neutra. Por exemplo, foi a primeira vez que vi palavras neutras como “públique”, “assimilade”, “ume”, “mesme”, etc. Acho importante que mais obras comecem a fazer o uso da linguagem neutra, até porque, como sabemos, a linguagem é mutável e adaptável desde os primórdios, então considero acertada a iniciativa dos tradutores. A inclusão é sempre bem-vinda.

O ponto de partida é a aversão do grupo com pessoas queer fazendo parte de movimentos criados ou patrocinados por grandes corporações que até alguns anos atrás eram responsáveis — de modo direto ou indireto — pela opressão sofrida por aquele mesmo grupo. Historicamente, antes da ressignificação do termo, queer era basicamente um xingamento, e significava entre outras coisas, marginal, criminoso e fora da lei, portanto, não faz muito sentido alguém que se entende como queer, ou gênero-queer não ser antirracista, anticapitalista, antiassimilacionista, etc. De acordo com a ideologia Bash Back!, o “Queer não é meramente outra identidade que pode ser adicionada a uma lista de categorias sociais asseadas, nem é a soma quantitativa de nossas identidades. Pelo contrário, é a posição qualitativa de oposição às expressões de estabilidade — uma identidade que problematiza os limites administráveis da identidade. Queer é um território de tensão, definido contra a narrativa dominante do patriarcado branco-hétero-monogâmico, mas é também uma afinidade com todas as pessoas que são marginalizadas, outrificadas e oprimidas.” (p. 24)

A inclusão presente no livro não acaba apenas com a linguagem, mas também — e seria um absurdo se não fosse — nas identidades, principalmente a trans. O capítulo intitulado “Rumo a um transfeminismo insurrecional” foi o ponto alto do livro, na minha opinião, pois me apresentou uma vertente do feminismo que eu não fazia ideia da existência. De acordo com as autoras do capítulo, Transfeminismo Insurrecional é “uma perspectiva que destacadamente analisa os modos pelos quais corpos trans se relacionam com o legado do capitalismo e as possibilidades de viver o comunismo e espalhar a anarquia.” (p. 127). Mas além de trazer à frente as transfeministas insurrecionais, o capítulo também aborda a relação controversa da identidade trans com o capitalismo, e no processo, até mesmo Leslie Feinberg é criticada. Partindo da noção de transexual no contexto dos Estados Unidos no começo do século XX, quando as primeiras narrativas de transexualidade surgiram, as duas autoras apontam que as identidades trans, principalmente as femininas, são intrinsecamente conectadas à ascensão das experimentações capitalistas que geraram as primeiras formas de cirurgia de readequação sexual. As autoras continuam: “Os desejos da sujeita trans são facilmente moldados para serem lucrativos ao capitalismo, seja em incontáveis sessões de depilação a laser, em cirurgias de reatribuição de gênero ou em terapia hormonal. Ou seja, a subjetividade trans está amarrada às condições do capitalismo e às técnicas disciplinárias que lhe deram origem.” (p. 129)

Para finalizar, é impossível não aplaudir a coragem das editoras no capítulo “Ideias sobre o desenvolvimento da teoria queer anarquista” que critica a linguagem extremamente acadêmica e elitista dos textos clássicos — e até mesmo mais recentes — sobre a Teoria Queer, visto que eles são, em sua maioria, difíceis de obter acesso e de serem estudados fora do contexto acadêmico. Todo o capítulo — ou até mesmo o livro como um todo — é uma violenta tentativa de expropriar a Teoria Queer da Academia e trazê-la novamente ao Povão Queer.


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