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Um retrato do Haiti em “A cor do amanhecer”, de Yanick Lahens

A cor do Amanhecer, da escritora haitiana Yanick Lahens, foi publicado no Brasil em 2022 pela editora Paris de Histórias, com tradução de Sônia Gabilly. Na trama acompanharemos a vida de uma família haitiana composta pela mãe, a filha mais velha, chamada Angélique, a mais nova, chamada Joyeuse, e Fignolê, o irmão do meio que é um militante político. Em uma determinada manhã as mulheres acordam e percebem que o rapaz não voltou para casa na noite anterior, e a partir de então o cenário político haitiano é usado como plano de fundo enquanto as mulheres da família tentam descobrir o paradeiro do seu ente querido. 

As pessoas comuns e os trabalhadores não conseguem empregos dignos, não conseguem se sustentar. Lahens cria, ou melhor, quase documenta uma geografia apocalíptica do Haiti através de uma narrativa que intercala os pontos de vista das duas irmãs, recurso que faz com que a narrativa se torne muito mais dinâmica, nos fazendo ter mais pontos de vista sobre o mesmo acontecimento, e em consequência é possível ter mais detalhes para formular nossos pensamentos sobre aquelas ações de uma forma muito mais completa.

Outro aspecto muito interessante do livro é o quanto as personagens mulheres são personagens profundas e complexas. Angélique, por exemplo, que é a mais velha, é mãe, mas tem uma relação muito complicada com a maternidade devido à uma gravidez indesejada, tendo que criar um filho sem uma figura paterna. Ela é uma mulher religiosa e contraditória, que fala muito sobre amor de Deus, mas é muito violenta com filho, às vezes personificando a ideia do oprimido que se torna também opressor. É oprimida por toda a situação social, mas em alguns momentos também oprime pessoas que são mais vulneráveis do que ela.

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Joyeuse, por outro lado, é uma personagem que dá para estabelecer uma uma conexão muito maior porque ela é uma jovem muito crítica. Já a figura da mãe em alguns momentos possui várias conexões com Carolina Maria de Jesus, que foi uma catadora de lixo que sofreu muito, que passou fome, que tinha três filhos também e que fazia de tudo para conseguir alimentá-lo diariamente sem precisar depender de homens para sobreviver.

Em determinado momento da história John, um personagem branco, é apresentado como um amigo de Fignolê — amigo até certo ponto, visto que quando os dois começaram a discordar sobre política a amizade acaba. É curioso como a mãe de Fignolê entende John quase como uma figura de Jesus por ele ser branco e por ela ter sido doutrinada a acreditar naquela imagem europeia de Jesus (branco de olho azul), então é interessante refletir sobre a relação da família com John sob esse recorte da alienação religiosa.

Já o Fignolê é um personagem que só conhecemos através do olhar das irmãs durante a investigação para entender o que pode ter acontecido com ele. Na medida em que vamos lendo, começamos a entender o quanto a violência e as tensões políticas moldam aquela sociedade, a deixando totalmente abandonada. Detalhe que vai minando aos poucos nossa esperança de encontrá-lo com vida por conta de toda a resistência dele e todas as críticas que ele faz ao governo.

Por último, é importante perceber como o Haiti possui uma relação com a história do Brasil, principalmente pela Revolta dos Malês, influenciada também pela revolta e pela luta das pessoas negras do Haiti, além da literatura haitiana ser pouco divulgada e pouco discutida no Brasil, mesmo sendo um tipo de história com muita riqueza e muitos assuntos que podem ser comparados e conectados com vários aspectos raciais, sociais e políticos que encontramos por aqui.

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