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Literatura Literatura estrangeira

A subversão na literatura policial em “A noite dos assassinos”, de Chester Himes

Em 1960 Chester Himes publicava All Shot Up, o 5º livro da sua aclamada série Harlem Cycle, e 22 anos depois o livro chegava no Brasil pela editora Abril com o título A noite dos assassinos. O romance, que na superfície prima pela violência e pelo caos, é novamente protagonizado pelos detetives negros Ed Caixão e Jones Coveiro, que agora embarcam em uma busca frenética por criminosos envolvidos com garotos de programas, políticos negros, praticante de crossdressing, drag queens e drag kings. A série se transformou em sucesso de público e crítica na França — onde Himes vivia como expatriado — graças à fascinação dos europeus com a cultura negra e com a literatura e o cinema Noir das décadas de 20, 30 e 40. 

Já no primeiro parágrafo do romance encontramos todos os elementos que ditarão o rumo e o ritmo da trama: figuras aparentemente estranhas e desconectadas uma das outras irão se revelar importantes peças na engrenagem criada por Himes neste que é talvez seu romance mais complicado, tortuoso, violento e certamente, o mais sexualmente transgressor. Relações amorosas fadadas ao fracasso, casamentos de fachada, homens negros importantes que não podem abraçar sua sexualidade e drag queens são apenas alguns ingredientes que encontraremos em A noite dos assassinos. 

Neve, paixão e traição

A trama de A noite dos assassinos acontece três anos depois os acontecimentos de A maldição do dinheiro e tem início na noite mais fria do ano do Harlem quando um ladrão está roubando os pneus de um carro e vê sua namorada, Sassafrás, com dois homens desconhecidos dentro de um imponente cadillac dourado que está prestes a atropelar uma freira de meia idade. O sujeito não acredita no que acabou de presenciar: após aparentemente ser atropelada, a freira se levanta e começa a rir quando é surpreendida e atropelada novamente por outro carro, dessa vez pilotado por dois homens vestidos de policiais. Páginas adiante vem a primeira supresa: iremos descobrir a identidade dos dois homens desconhecidos, sendo que um deles é Roman Hill, marido de Sassafrás, e Mister Baron, um homem baixo e afeminado que havia vendido o carro para o sujeito. Em apenas alguns parágrafos já ficamos sabendo que Sassafrás engana os dois homens, seu marido e aquele que acredita ser seu namorado exclusivo. Se você apostou que Sassafrás é a femme fatale do romance, você apostou certo. Assim como Imabelle era a femme fatale e o termômetro de A maldição do dinheiro, o mesmo acontece aqui com Sassafrás. Ela está praticamente em todas as cenas, além de ser o elo que liga todos os acontecimentos criminais do romance. É ali também que Chester Himes deixa uma pequena e quase displicente pista acerca da identidade verdadeira de outro personagem chave na narrativa. Devemos prestar atenção em todas as descrições corporais que o autor escreve durante o romance.

Minutos depois, em um requintado bar gay chamado “Paris Bar” que fica em outra parte do Harlem, uma mulher trans chamada Snake Hips dança no meio da rua para fazer ciúmes em seu amante quando um tiroteio acontece e em um piscar de olhos Casper Holmes, um proeminente político negro que passava em frente ao local é assaltado e alvejado várias vezes pelos homens vestidos de policiais e perde sua maleta contendo 50 mil dólares que seriam usados em sua campanha.

Os responsáveis em investigar os dois crimes são, é claro, Ed Caixão e Jones Coveiro. Após interrogarem várias testemunhas do tiroteio, ambos são chamados para investigar a morte de uma freira de meia idade encontrada grudada no muro de um convento. Como vocês já devem ter imaginado, trata-se da freira atropelada pelos homens vestidos de policiais. Mas aqui a história começa a se complicar graças à interseção das tramas e persoagens: ao retirarem o corpo do muro eles descobrem que a freira de meia idade era uma drag queen na faixa dos 20 anos conhecida na região como Black Beauty que possui uma relação conturbada com alguns dos personagens-chave da história.

A sequência em que os detetives, acompanhados dos legistas, vão descobrindo aos poucos a verdadeira identidade de Black Beauty é ao mesmo tempo sensual e, por conseguinte, grotesca, afinal eles estão diante de um cadáver, e reveladora, funcionando quase como um striptease macabro. Ao retirarem o vestido os policiais se deparam com um corpo sensual, delineado e ostentando delicadas peças de lingerie. Um deles, nítidamente excitado, chega a elogiar o corpo da mulher. Todos estão estranhamente atraídos pela mulher até que o legista retira um sutiã com enchimento revelando peitos de homem. Só então, quando a narração descreve o avantajado volume embaixo da delicada calcinha, é que todos na cena percebem que estão diante de um corpo de homem. Imediatamente percebemos uma mudança repentina no tom das conversas, como se eles tivessem com vergonha de terem sido flagrados objetificando um cadáver masculino. Esse comportamento é bastante comum nesses tipos de personagens, aliás. Em vários livros e filmes baseados em obras do Noir é quase certo que algum personagem masculino irá lamentar a morte da vítima caso ela seja bonita.

Chester Himes versus o cânone literário Noir

Em termos histórico-narrativos dentro do contexto literário, o romance já se diferencia de outras obras do Noir apenas por utilizar narração em terceira pessoa, e não um protagonista narrando a história em flashbacks em primeira pessoa, opção usada constantemente em romances e filmes do gênero. Além da escolha pela narração, grande parte dos livros do Harlem Cycle se diferenciam do resto por sua ambientação e por seus personagens sexualmente marginais (negros gays e afeminados, praticante de crossdressing, lésbicas butch e mulheres trans) que dificilmente eram trazidos para a frente da narrariva por outros autores conhecidos do gênero. 

Apenas os motivos acima já tornariam Chester Himes alguém que deveria ser muito mais conhecido a nível mundial, mas o autor ainda consegue ser criativo e não soar repetitivo na construção das tramas apesar de algumas delas serem parecidas. Se em O Harlem é escuro os detetives enfrentaram um calor escaldante durante as investigações na cena gay harlemniana, aqui a neve pede passagem e praticamente se transforma em um imponente personagem da história, constantemente atrapalhando o trabalho dos detetives, seja ao congelar o rosto ensanguentado de uma vítima e assim a impedindo de ser identificada; ao criar imagens evocativas dignas de livros de terror, como ruas escuras cobertas de neblina; ou até mesmo dificultando o tráfego de dois veículos em uma sequência de tirar o fôlego no terceiro ato da narrativa. 

Em A maldição do dinheiro, primeiro livro da série, o autor explorava o submundo queer do Harlem ao escrever sobre o assassinato de um diretor de teatro, e aqui ele triplica o fator “corpos marginais”, inserindo muito mais personagens de diversas identidades, fetiches e orientações sexuais, além de também ser mais engenhoso em termos de trama, violência e reviravoltas.

No meio do caos criado por Himes para eternizar o Harlem em seus romances, poderemos presenciar de fato a experiência dos protagonistas como detetives, que ao que tudo indica, já estão atuando no Harlem há pelo menos 6 anos. Em determinado momento, por exemplo, ao sentir um cheiro de produto químico no cabelo de uma vítima, Ed Caixão consegue identificar em qual salão de beleza a vítima havia sido atendida, detalhe que a princípio pode significar uma boa dedução do sujeito, mas que se analisado no contexto do submundo queer, indica algo mais profundo: se ele consegue reconhecer o salão de beleza através do cheiro de um cabelo é sinal de que ele possui contato íntimo com alguma cliente deste salão, e considerando que os estabelecimentos ali são frequentados por drag queens, mulheres trans e praticantes de crossdressing, tudo indica que Ed Caixão pode estar mais em contato com a vida noturna gay do Harlem do que imaginamos. 

É importante analisar Ed Caixão e Jones Coveiro como dois corpos estranhos dentro da marginalidade Queer do Harlem, uma vez que a figura do detetive na literatura noir é intrinsecamente ligada à virilidade, à heteronormatividade e à hipermasculinidade branca. Ao inserir a figura do detetive no submundo Queer, muitas vezes recebendo flertes de outros homens, Chester Himes desconstrói essa hipermasculinindade histórica dos detetives dentro do gênero noir, que quase sempre terminam com uma femme fatale — devidamente cisgênera e branca —; e, principalmente, o homoerotismo entre homens negros — que como sabemos, possuem uma certa dificuldade em aceitar a (própria) homossexualidade e a transexualidade como algo natural. Este é um recorte histórico que relaciona a sexualidade (gay ou afeminada) do homem negro diretamente à prática do blackface durante e depois da era dos teatros Vaudeville, onde homens brancos pintavam o rosto de preto e faziam números artísticos retratando homens negros como afeminados. De qualquer forma, é um assunto que merece sua própria análise individual, portanto não irei me aprofundar no tema.

Referências históricas e artísticas

Podemos perceber o cuidado de Chester Himes ao batizar alguns dos estabelecimentos no romance, e assim os conectando com acontecimentos ou costumes conheceidos ou presenciados pela população negra. O bar Paris, por exemplo, é descrito como um ponto de encontro de minorias (ou seja: gays, drag queens e drag kings e crossdressers negros que não são aceitos pela comunidade negra), detalhe que dialoga diretamente com a vivência de soldados negros norte-americanos e intelectuais expatriados na capital francesa — que frequentavam os mesmos lugares, comiam as mesmas comidas e viviam nos mesmos bairros durante e após a Segunda Guerra Mundial. Logo, não é difícil perceber como o autor parece relacionar as vivências do negro queer — um marginal que se recusa a aceitar e performar a heteronormatividade imposta pela sociedade branca — com a sua própria história enquanto um escritor negro e queer — um marginal no contexto da literatura Noir que se recusou a compactuar com o padrão cisheteronormativo dos autores que popularizaram o gênero, inserindo uma infinidade de personagens sexualmente transgressores sempre que tinha a oportunidade.

Himesverso

É interessante percebermos como Himes se preocupa com a continuidade da série de romances, já que durante as investigações, ele irá trazer novamente para a narrativa ninguém mais ninguém menos do que Jackson, o protagonista de A maldição do dinheiro, que aqui tem uma pequena e metalinguística participação que nos remete imediatamente a uma cena chave daquele romance. Juntamente com outros nomes, Jackson surge de forma extremamente orgânica criando uma espécie de Himesverso plausível, já que tudo é construído com exímia atenção, sem deixar pontas soltas ou perguntas sem respostas e interligando acontecimentos de diferentes momentos da narrativa — ou até mesmo de romances anteriores ou posteriores. Infelizmente, não existe nenhuma citação à Imabelle, a femme fatale do primeiro romance da série — o que indica a possibilidade de que todos os esforços de Jackson não foram suficientes para manter a amada ao seu lado.

Com A noite dos assassinos Chester Himes entregou uma das melhores e mais violentas histórias protagonizadas por Ed Caixão e Jones Coveiro, em que personagens sexualmente questionadores perambulam por um Harlem inegavelmente queer de forma meticulosamente pensada. Himes publicou 8 romances protagonizados por Coveiro e Caixão antes de falecer na década de 80 na Espanha, sendo que os livros A maldição do dinheiro, Um jeito tranquilo de matar, A louca matança, e O Harlem é escuro receberam análises aprofundadas anteriormente no blog e podem ser acessadas aqui.

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