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Não-ficção Raça

“Dispositivo de racialidade”: o trabalho imensurável de Sueli Carneiro

Capa do livro de Sueli carneiro com uam foto da autora do lado em um fundo vermelho

Sueli Carneiro é um nome que deveria dispensar apresentações. Filósofa e ativista do movimento negro — tendo cofundado o Geledés – Instituto da Mulher Negra, por exemplo —, é uma intelectual brasileira extremamente importante. Seu trabalho, vasto e que soma décadas, já alcançou muita gente, ora influenciando, ora mudando suas vidas. Não há no país pessoa séria que realmente se preocupe com as questões raciais que não a tenha como referência ou, ao menos, a respeite. Dispositivo de racialidade (2023, Zahar) é a tese de doutoramento de Carneiro defendida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em 2005 finalmente transformada em livro — seu título original, A construção do outro como não ser como fundamento do ser, agora é subtítulo da obra, trabalho de filosofia política incontornável que nos mostra por que a autora é pessoa imprescindível para entendermos o nosso país e a nossa história. 

Em Dispositivo de racialidade, Sueli Carneiro evoca Michel Foucault para elaborar o seu conceito original, o mesmo que dá título ao livro. Manipulando as ideias de biopolítica e dispositivo propostas pelo filósofo francês, alinhando-as à noção de contrato racial de Charles Mills, Carneiro nos presenteia com uma ótima ferramenta teórica para que possamos analisar as dinâmicas raciais, sobretudo a brasileira. Principalmente por ela ter sido pensada tendo o nosso contexto em vista. Até porque a autora parte de Foucault e Mills, mas expande suas reflexões, ao mesmo tempo que dialoga com outras autoras e autores — inclusive, brasileiros. 

Segundo Sueli Carneiro, a sua intenção é complementar a visão de Foucault, que ao ter a sexualidade como norte possível para a sua concepção de dispositivo — que para o autor são “estratégias de relações de força, sustentando tipos de saberes e sendo por eles sustentado” —, lhe parece permitir tal análise partindo da racialidade, pois, segundo argumenta, “o dispositivo de racialidade também produz uma dualidade entre positivo e negativo, tendo na cor da pele o fator de identificação do normal, e a brancura será sua representação. Constitui-se assim uma ontologia do ser e uma ontologia da diferença”. 

Em outras palavras, ao se pôr a branquitude como “sinônimo de humanidade”, os não brancos são percebidos como seres inferiores, como em uma hierarquia, com aqueles sendo vistos como o Ser e estes como os Outros. E, como afirma a autora em certa altura, “o racismo cumpre o papel de fragmentar o campo biológico, do qual o poder tomou conta, para dividi-lo conforme ‘raças’ e assim introduzir um corte entre quem deve viver e quem deve morrer”. Em suma, uma questão de poder, na qual a negritude se encontra sob o signo da morte.

Além da elaboração teórica original e substantiva, Dispositivo de racialidade também traz um desdobramento mais prático por meio da investigação que a autora faz com as entrevistas que compõem o corpo do seu trabalho. Nelas, Carneiro convoca nomes importantes da militância negra, referências em suas áreas de atuação, mas também de forte presença política, com o intuito de, por meio de suas histórias de vida, desnudar tanto as práticas racistas a que foram expostos quanto os possíveis modos de resisti-las que encontraram. Para tanto, Carneiro traz para a conversa Edson Cardoso, Sônia Maria Pereira Nascimento, Fátima Oliveira e Arnaldo Xavier (este numa homenagem póstuma) em um segmento da obra que ganha ares de prosa narrativa e conferem a ela outro fôlego, enriquecendo-a. Nessa parte do livro, intitulada “Resistências”, afinal, “a todo poder se opõe uma resistência”, somos expostos às semelhanças e diferenças entre as experiências dos entrevistados, nos permitindo identificar tanto as suas estratégias de sobrevivência quanto as autonomias alcançadas. É muito importante constatarmos como a educação e o cuidado de si — que na concepção de Carneiro “se realiza no cuidado do outro, na busca coletiva por emancipação” — são ferramentas imprescindíveis para enfrentar o racismo e as dores que ele traz. 

Por fim, achamos importante frisar que esta breve resenha não dá conta da magnitude de Dispositivo de racialidade. A colaboração do trabalho de Sueli Carneiro é imensurável. Não à toa, sua tese sempre fora referenciada por diversos pesquisadores. A demora para a sua publicação em livro é injustificável, mas a sua chegada deve ser celebrada. É um horizonte que se abre para que novas leituras sociais sejam feitas. Sobretudo, quando localizamos os nossos problemas. O racismo e seus tentáculos são uma violência que transpassa as bordas. Porém, ao nos voltarmos para ele a partir das especificidades que cada contexto ou realidade exige, isso nos ajuda a compreendê-lo e a encontrarmos novas estratégias para enfrentá-lo. E esse é, sem dúvida, o maior mérito do trabalho de Carneiro. Isso faz com que Dispositivo de racialidade também seja um ato de resistência. Que esse movimento jamais deixe de ser perene.

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