Portland Diary: Short Stories 2016 / 2017
Publicado de forma gratuita e com opção de download pela jovem escritora Jamie Berrout em 2016 em seu Patreon, e publicado em versão física em 2017, Portland Diary: Short Stories 2016 / 2017 é um livro contendo sete contos protagonizados por mulheres trans e latinas em situações difíceis, sejam elas relacionadas ao racismo, transfobia, xenofobia, problemas causados pela poluição, ou a inevitável aniquilação da população de uma cidade que vem sofrendo com terremotos cada vez mais fortes, e não menos importante, o descaso do governo com o ecossistema e com terras indígenas.
Um aspecto interessante de Portland Diary é a constante presença de uma atmosfera utópica e quase pós-apocalíptica. A conexão digital é onipresente, como não poderia deixar de ser. Seja ela diretamente relacionada a redes sociais, e-mails, inteligência artificial ou ciberterrorismo, como acontece no conto “Valeria”, quando a protagonista, interrogada pelo FBI conta a história da relação com a namorada, Valeria, acusada pelo FBI de terrorismo. Valeria, cansada dos crimes causados pelo Complexo Industrial Prisional americano, constrói drones com peças de celulares velhos e explode uma prisão, libertando assim os encarcerados. Berrout constrói esse conto com riquíssimos detalhes, inclusive como o casal se conheceu em um site para praticantes de bondage e sadomasoquismo.
Em “Beach House”, Berrout escreve de forma impressionante, alternando saltos no tempo entre passado e futuro, a história de duas mulheres trans: no presente, Mara, uma jovem escritora trans que tem de lidar com seus próprios traumas quando seu editor descobre que seu livro premiado é na verdade a história roubada de uma de uma mulher trans morta 30 anos atrás, que ela publicou como se fosse a sua própria história, e no passado, a vida de Alejandra com seu filho Miguelito, sua relação conturbada com sua mãe, avó do garoto, e finalmente como teve seu manuscrito roubado.
Waiting Room
O conto de ficção científica transfuturista “Waiting Room” é o foco desta resenha, e conta a pequena história de uma conversa, e como consequência de uma série de opressões em comum, a repentina ligação entre uma mulher trans de origem mexicana e uma androide enquanto ambas aguardam sua consulta em uma clínica especializada em feminização facial.
Muito da escrita de Berrout, seja em seus ensaios, poemas ou na ficção especulativa é uma resposta imediata com um recorte queer de raça, classe e transfeminismo ao clima hostil e conservador adotado por Trump contra negros, latinos, mulheres trans e qualquer grupo não-branco. Logo, não foi difícil traçar um paralelo com a situação da política brasileira atual, visto que assim como lá, o conservadorismo da extrema direita brasileira ganhou forças, e isso lamentavelmente fez com que atos racistas, homofóbicos e transfóbicos passassem a ser acontecimentos comuns, e não mais entendidos como crimes, já que passaram a ser normalizados por quem governa o país.
Jamie Berrout
Logo no início, ao estabelecer a geografia do ambiente e a primeira conexão amistosa entre as protagonistas, a autora critica veementemente o brancocentrismo da mídia americana quando desconstrói o medo da branquitude heterossexual e capacitista perante o que é novo, o que é diferente. Berrout usa o corpo androide feminino como uma analogia sobre o preconceito resultante do tratamento da mídia através das décadas com relação ao corpo negro, latino e trans, os transformando constantemente em aberrações, ladrões, assassinos e estupradores.
A jovem autora constrói a protagonista humana com cuidado. Podemos perceber, por exemplo, como ela evita encarar a androide, sabendo por experiência própria quão intrusivos os olhares de estranhos podem parecer. Em certo momento, ela é abordada pela androide, que elogia seu tom de pele, e imediatamente, como havia previsto a protagonista humana em sua mente, pergunta a sua etnia. Prestes a entrar em um monólogo interno sobre o fetichismo sofrido pela mulher trans, ela percebe estar diante de uma mercadoria que acaba absorvendo e cometendo as micro agressões racistas de seus donos, atuando, então, em ambientes de homogeneidade branca. Não pude evitar de lembrar de toda a recente argumentação online para decidir se o algoritmo do Twitter era ou não de fato racista. Mais adiante, a protagonista passa a se ver nas rugas e marcas de idade encontradas na agora amiga androide por causa de anos de trabalhos forçados antes de tornar-se livre, e retribui um olhar de simpatia, ao lembrar que ela também está ali em busca de liberdade, mas a liberdade de não precisar se esforçar em parecer cis entre pessoas cis, enfim, ser passável, já que “ser passável” vai muito além de um ato vazio de estética, e sim questão de sobrevivência.
Consistente em suas analogias, em certo momento a autora comenta a brutalidade policial através de memórias da protagonista, que relembra a ocasião em que humanos lutaram lado a lado com androides contra a polícia, formando um misto escudo humanoide, enquanto um grupo menor de androides consertava uma de suas “irmãs” que havia sido baleada. Seria impensável não relacionar esse trecho com a intersecção entre racismo e transfobia, visto que não é anormal ver homens e mulheres negras, que mesmo sendo vítima de racismo (e homofobia, caso sejam gays/lésbicas) fecharem os olhos quando a opressão passa a ser contra mulheres trans, ou quando o feminismo branco radical não só exclui como também faz parte do grupo de linchamento (online ou literal) que sofrem as mulheres trans ao redor do mundo.
O conto termina com a androide relembrando seu amor pelo oceano, e a primeira vez que foi esquecida por seus donos em uma praia enquanto fazia uma pesquisa. Ela descreve sua solidão ao se perceber tão pequena perante àquela imensidão de água, ao mesmo tempo em que se sente quase humana pois sente as ondas beijando seus pés. A poesia visual em forma de escrita de Berrout ganha uma força descomunal quando a androide, agora ex escravizada descreve o pôr do sol e sua noite sob as estrelas de forma tão amorosa, mesmo que, naquela ocasião, sua liberdade era impedida pelas enormes e pesadas coleiras que era forçada a usar.
Para mais informações sobre a versão física ou o e-book, ou sobre outros livros lançados pela autora, visite o website da autora ou seu perfil no Goodreads.