A ausência de autores negros de literatura policial no mercado editorial brasileiro

Faça o seguinte exercício: caminhe até a sua estante — ou abra o seu perfil na sua rede social literária preferida, ou, quem sabe, vá até a livraria mais próxima de sua casa, ou em sites especializados — e procure por romances policiais ou pense em famosos detetives na literatura mundial. É bem provável que você encontre nomes consagrados como Erle Stanley Gardner (criador do investigador Perry Mason), Agatha Christie, James Ellroy, Sir Arthur Conan Doyle, Dashiell Hammett e Raymond Chandler, ou alguns mais contemporâneos, como Jo Nesbø e Stieg Larsson — autores devidamente brancos e criadores de protagonistas igualmente brancos. 

Mas não me acusem de racismo reverso! Não, muitos de meus detetives favoritos são brancos! Eu adoro a Miss Marple de Agatha Christie! De qualquer forma, sou, principalmente, um aficionado pela literatura hardboiled, aquela literatura pulp e noir que gerou livros como O sono eterno e O falcão maltês — romances escritos por Raymond Chandler e Dashiell Hammett, respectivamente — adaptados para o cinema como The Big Sleep, em 1946, e Relíquia Macabra, em 1941. É este estilo de literatura policial que considerarei como ponto de partida e espinha dorsal desse texto.

Dificilmente autores negros figuram em um lugar de destaque na literatura policial, ou mesmo na literatura clássica de detetives. Com Holmes e Poirot as tramas aconteciam sempre dentro de trens, bibliotecas de grandes mansões inglesas ou em cruzeiros marítimos, e o clímax destas histórias eram alcançados apenas quando, no final, todos os suspeitos eram colocados em uma grande sala, onde o detetive fazia um interminável monólogo antes de apontar o assassino. Já com autores como Hammett e Chandler, essas tramas passaram a acontecer em cidades como Chicago, Los Angeles, Nova York e São Francisco, geralmente em ruas escuras e sujas, bares clandestinos, e com detetives igualmente suspeitos — ou às vezes até mais — do que quem cometia o crime de fato. 

Com essa mudança de ambientação a resolução do crime deixava de ser o aspecto mais importante das histórias, já que agora estávamos diante de textos que eram verdadeiros estudos de personagens. O que importava era o caminho, as decisões e as questões — morais, filosóficas e existenciais — dos protagonistas, que eram durões, solitários, sempre devidamente com aparência cansada, entre 35 e 45 anos de idade, e com dietas que consistiam em bebidas alcóolicas, ovos fritos, café e cigarros. Às mulheres, é claro, sobravam os papéis de femme fatales.

Neste novo cenário começaram a aparecer personagens negros, mas, como era de se esperar, já que estamos falando de uma literatura criada por autores brancos entre as décadas de 1920, 1930 e 1940, estes personagens pequenos, quase sempre sem nomes, ou eram bandidos, bêbados, garotas de programas ou empregadas domésticas, escritos de forma desleixada, racista e estereotipada.

Entretanto, lentamente surgiram autores negros que começaram a trazer elementos da literatura clássica policial para a sua realidade — ou a inserir sua realidade na literatura clássica policial. Com a inserção de temas como racismo, violência policial, Jazz e outros estilos musicais característicos da comunidade negra, estes autores elevaram a qualidade dessas histórias e trouxeram pluraridade à tramas que eram até então brancas. Agora não existem mais bibliotecas inglesas e detetives bigodudos, mas sim as ruas do Harlem, bares esfumaçados onde o Acid Jazz era a trilha sonora. Sam Spade e Philip Marlowe, dois dos mais famosos detetives da literatura hardboiled, agora dividem as prateleiras das livrarias e bancas de jornal com detetives negros que conquistavam cada vez mais público e crítica. Era, definitivamente, um novo mundo literário onde o negro deixava de ser o “outro” na literatura e passava a comandar o ritmo da trama.

Abaixo, e de forma alternada, irei analisar a carreira e a importância literária de 5 autores negros norte-americanos considerados os melhores na arte de escrever sobre crimes e investigações — duas autoras e três autores —, e no caminho, tentaremos imaginar juntos o motivo pelo qual apenas três destes autores foram publicados no Brasil, embora suas carreiras tenham de sucesso de público e crítica nos Estados Unidos há várias décadas.

1 – Eleanor Taylor Bland

Créditos: Crimereads

Eleanor Taylor Bland publicou Dead Time, seu primeiro romance, em 1992 aos 48 anos de idade. A protagonista da trama é a policial Marti MacAlister, uma mulher durona que foi construída para ir contra todos os estereótipos da mulher negra na cultura pop norte-americana. Recém-viúva, Marti foi transferida de Chicago para uma pequena cidade chamada Lincoln Prairie, em Illinois. A protagonista se transformou em um ícone feminista entre os leitores e leitoras das comunidade negra da época, estrelando nada mais nada menos do que 14 romances.

Por alguma razão que foge ao meu entendimento, até o momento deste texto nenhum dos 14 romances protagonizados por Marti MacAlister foram traduzidos para o português. Com certeza trata-se de uma grande tristeza para os fãs de romances policiais, principalmente por se tratar de uma autora negra que trouxe a mulher negra para o centro da narrativa, que até então era comumente deixada às margens quando o assunto é a literatura policial. Bland faleceu em 2010.

2 – Iceberg Slim

Créditos: nytimes.com

Nada mais sintomático do que falarmos a seguir de Iceberg Slim, que faleceu em 1992, ano em que Bland lançava seu primeiro romance. Nascido Robert Lee Maupin em Chicago, Illinois, — novamente, mais uma coincidência com o primeiro romance de Bland — Iceberg Slim se transformou em cafetão aos 18 anos quando foi expulso da universidade por traficar bebidas alcoólicas. 

Em 1961, após passar cerca de 10 meses na solitária de uma prisão, Slim começou a perceber os efeitos do tempo em seu corpo: aos 42 anos, ele já não se via apto a competir com a juventude das ruas, e como resultado, decidiu usar toda a sua experiência no mundo do crime para escrever romances policiais — decisão que nos faz lembrar de Chester Himes, que também será abordado neste texto. Ao longo de sua carreira Slim escreveu 7 romances, um livro de memórias, uma autobiografia e um livro de contos.

Pimp: The story of my life, seu primeiro livro, foi publicado em 1967, e apesar de reviews não muito empolgantes no início, o livro se transformou em um sucesso entre o público negro, e em 1973 já contava com 19 reedições e com cerca de 2 milhões de exemplares vendidos. Seu segundo livro, o romance Trick Baby: The Biography of a Con Man, foi publicado também em 1967, e adaptado para o cinema em 1972. “Trick Baby” foi e ainda é um primoroso exemplo do gênero “Blaxploitation”. Na trama acompanhamos o dia a dia de dois vigaristas negros na Filadélfia: “Blue” Howard, um homem negro retinto, e White Folks, um homem negro de pele claríssima que consegue se passar por branco.

3 – Barbara Neely

Créditos: NY Daily News

Neely nasceu na Pensilvânia em 1941 e ficou conhecida mundialmente por ser uma ativista e autora de romances e contos de literatura policial pautados pelo bom humor. A autora publicou seu primeiro romance, Blanche on the Lam, em 1992. Na trama acompanhamos Blanche White, uma mulher negra de meia idade, que após fugir da prisão, decide ir trabalhar como doméstica em uma família de brancos desajustados, para assim usar a “invisibilidade da mulher negra doméstica” a seu favor — um aspecto interessante usado por Neely para construir a personagem como detetive amadora, já que por ser praticamente invisível, ela consegue observar toda a ação de um ponto privilegiado — no contexto da trama, é claro. 

Blanche se transformou em uma das mais queridas personagens literárias entre o público negro da época, e com o sucesso de Blanche on the Lam, Neely publicou mais 3 romances protagonizados por Blanche White: Blanche Among the Talented Tenth, em 1994, Blanche Cleans Up, em 1998, and Blanche Passes Go, em 2000.

Suas influências literárias são Toni Morrison, Walter Mosley e Chester Himes. Apenas em 2022 o seu primeiro romance foi publicado no Brasil com o título Blanche em apuros, pela editora Darkside Books.

4 – Walter Mosley

Créditos: prnewswire.com

Talvez um dos nomes mais conhecidos dessa lista — mas ainda sim praticamente desconhecido do leitor médio brasileiro que se considera aficionado por romances policiais — Mosley é, mais do que nunca, herdeiro direto do estilo literário pulp e hardboiled de Iceberg Slim e Chester Himes, ou até mesmo de Raymond Chandler e Dashiell Hammett. 

Apesar de se aventurar por vários gêneros literários — YA, ficção científica afrofuturista, HQ’s e não ficção —, sua maior criação é o detetive negro Easy Rawlins, protagonista de 15 romances, sendo o primeiro, Devil in a Blue Dress, publicado em 1990, o mais famoso de todos. Na trama acompanhamos o investigador Easy Rawlins, que ao aceitar investigar o desaparecimento de uma mulher branca, acaba envolvido em uma trama política que pode ser mortal. 

O sucesso do livro foi tamanho que em 1995 ganhou uma adaptação para o cinema dirigida por Carl Franklin e estrelada por Denzel Washington e Don Cheadle chamada “O diabo veste Azul”. O filme é considerado por muitos especialistas como um dos melhores filmes do gênero Neo-noir da história recente do cinema norte-americano.

Além de Easy Rawlins, Mosley possui outras icônicas séries de livros policiais, como por exemplo, a protagonizada pelo investidador Leonid McGill, um boxeador aposentado. McGill é o personagem principal em 6 romances. Uma curiosidade: o segundo livro da série, Known to Evil foi publicado em 2010, ano que Eleanor Taylor Bland viria a falecer.

5 – Chester Himes

Créditos: caoscultural.com.br

Nascido em Missouri em 1909, Himes cresceu em uma família de classe média, mas após ser expulso de sua escola no ensino médio acabou preso por um assalto à mão armada. Sentenciado a cumprir uma pena de 25 anos de prisão, ele passou a usar sua experiência como encarcerado como base para suas histórias e manuscritos escritos enquanto estava preso. 

Alguns anos após ser solto em 1931, e com a ajuda de intelectuais negros, ele conseguiu publicar vários romances ao se mudar para França — como fizeram outros intelectuais negros da época como James Baldwin, Langston Hughes e Richard Wright —, sendo a série de livros Harlem Detective sua magnum opus. A série é protagonizada por dois detetives negros durões, Grave Digger e Coffin Ed (respectivamente, Coveiro e Ed Caixão, em tradução literal), que estrelam 8 romances que podem ser classificados como primorosos exemplos do gênero hardboiled. Entre eles estão O Harlem é escuro, A Louca matança, A maldição do dinheiro, e Um jeito tranquilo de matar — todos publicados no Brasil pela editora L&PM Pocket.

Como não poderia deixar de ser, vários de seus romances foram transformados em filmes de sucesso, e alguns transformados em filmes de Blaxploitation, como foi o caso de Cotton Comes to Harlem, publicado em 1965 e adaptado para o cinema em 1970, se tornando um fenômeno de bilheteria ao arrecadar cerca de 5 milhões de dólares — com um orçamento de 1 milhão de dólares.

Espero que esse texto tenha gerado curiosidade aos leitores não familiarizados com os nomes citados acima. Espero também ter conseguido deixar claro a importância da voz negra dentro da literatura policial, e como, principalmente no contexto atual, nada justifica a ausência dos autores aqui citados nas editoras brasileiras.

Fontes:
https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_crime_fiction#Hardboiled_American_crime-fiction_writing
https://en.wikipedia.org/wiki/Noir_fiction
https://www.nytimes.com/2013/07/19/movies/ice-t-produces-a-documentary-about-iceberg-slim.html
https://en.wikipedia.org/wiki/Chester_Himes
https://www.caoscultural.com.br/single-post/2019/02/06/se-ele-gritar-deixe-o-ir-chester-himes
https://en.wikipedia.org/wiki/Walter_Mosley
prnewswire.com/news-releases/masterclass-announces-acclaimed-author-walter-mosley-to-teach-fiction-and-storytelling-301185368.html
https://www.npr.org/2020/03/11/814603243/remembering-barbara-neely-a-pioneer-in-crime-fiction
https://www.nytimes.com/2020/03/11/books/barbara-neely-dead.html
https://en.wikipedia.org/wiki/Iceberg_Slim
https://aalbc.com/authors/author.php?author_name=Eleanor+Taylor+Bland
https://crimereads.com/honoring-the-legacy-of-eleanor-taylor-bland-a-roundtable-discussion/

5 respostas

  1. Boa tarde. Brilhante seu ponto de vista. Esse pensamento que me fez focar em meu romance policial, pra assim valorizar mais os escritores negros de literatura no brasil e em um gênero, com autores negros, pouco explorado aqui. Qualquer coisa manda mensagem pra conversarmos mais, William. Abraço.

  2. Confirma pra mim, por favor, foram dois autores ou foi mesmo apenas 1, desses 5, traduzidos e publicados no Brasil?
    Pergunto, pois fiquei confusa, no texto está que de Barbara Neely, “Apenas em 2022 o seu primeiro romance foi publicado no Brasil com o título Blanche em apuros, pela editora Darkside Books.” e de Chester Himes “Entre eles estão O Harlem é escuro, A Louca matança, A maldição do dinheiro, e Um jeito tranquilo de matar — todos publicados no Brasil pela editora L&PM Pocket.” Obrigada pelo texto, William Alves, estou pesquisando sobre romance policial e minha pesquisa é afrocentrada. Os conteúdos de @impressoesdemaria são muito bons!

    1. Oi, Nathalia. Primeiramente obrigado pelas palavras e por ter lido o meu texto.
      Na verdade houve um erro da minha parte. Quando comecei a escrever o texto, “Blanche em Apuros” sequer tinha sido anunciado para ser publicado no Brasil. No decorrer dos meses a Darkside anunciou o lançamento dele, mas me esqueci de mudar o texto em que digo ter apenas um deles. Mas, curiosamente, aconteceu praticamente a mesma coisa com Walter Mosley. Após a publicação deste texto acabei descobrindo que um de seus livros, “Quem matou Nola Payne?” conta com uma tradução de 2005.

      1. William, muito obrigada pela resposta. E mesmo traduzidos e publicados no Brasil as quantidades e a divulgação é mesmo baixa. Portanto segue sendo muito necessário mapear e falar sobre isso. Essa pesquisa que você fez para o seu texto me ajudou bastante. Sigamos nessa. Bom trabalho pra você e obrigada mais uma vez.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

R$ 5.829/mês 72%

O seu novo espaço feito para conversas literárias marcantes.