Através do olhar cínico de Himes, o Harlem se transforma em um vulcão prestes a entrar em erupção
Chester Himes nasceu em 1909 no Missouri em uma família negra de classe média, e quando tudo parecia caminhar em águas calmas para o jovem, ele foi expulso da escola no ensino médio e em seguida acabou preso por um assalto à mão armada. Condenado a 25 anos, Himes passou a usar a sua experiência no crime para escrever rascunhos e textos, que eram enviados da prisão para revistas para serem publicados. Após ser solto em 1931, Himes se viu fazendo o mesmo caminho de escritores do porte de Langston Hughes, James Baldwin e Richard Wright: tornou-se um expatriado na França, uma vez que seu trabalho não era valorizado em seu país natal.
Lá começou a trabalhar em uma série de literatura pulp chamada “Harlem Detective” protagonizada por dois detetives negros: Grave Digger Jones e Coffin Ed (Jones Coveiro e Ed Caixão, respectivamente). Os romances eram uma atualização do gênero literário Hardboiled, que, historicamente branco, começou a ter personagens negros — escritos por autores negros — no centro de suas narrativas. Chester Himes passou a ser considerado um verdadeiro maestro, ou, melhor: conducteur literário aos olhos dos franceses, fato que fez com que sua obra passasse a ser finalmente publicada e valorizada nos Estados Unidos.
Chegamos, então, a Um jeito tranquilo de matar, segundo romance da série, que fora publicado originalmente em 1959, e trazido para o Brasil graças ao maravilhoso trabalho da editora L&PM Pocket (com tradução de Celina Falk Cavalcante). O livro possui — pelo menos a princípio — uma narrativa simples: estamos no Harlem nos anos 50 quando Ulysses Galen, um homem branco, é assassinado após uma briga de bar. O suspeito foragido é Sonny, um jovem negro que foi visto nas redondezas portando uma arma fumegante, récem disparada. Os detetives responsáveis pelo caso são, obviamente, Jones Coveiro e Ed Caixão, que por outro lado, possuem uma tarefa nada fácil: encontrar o suspeito — visto apenas de relance enquanto perseguia Galen pelas ruas escuras do Harlem —, e descobrir o motivo do assassinato.
De prosa afiada e narrativa claustrofóbica, a obra tem tudo aquilo que o leitor aficionado pelo gênero Noir — seja em livros ou filmes — pode esperar: violência estilizada e noturna, tiroteios, detetives durões que operam acima da lei, uma femme fatale e, principalmente, um interminável número de personagens, capangas e sub-tramas que são acrescidos na história no virar de cada página, complicando não apenas o trabalho dos detetives, mas também a leitura — o que faz todo sentido, pois deste modo o leitor vive em tempo real aquela investigação policial.
A cena de abertura é soberba em sua construção e serve como uma amostra de tudo o que está por vir, já que em apenas algumas páginas, Himes já estabelece os personagens principais e possíveis suspeitos, além de deixar pistas sobre a resolução da investigação e sobre o que devemos esperar com relação à violência.
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Adiante, surge na história o cafetão decadente Ready, que, em parceria com Sheba (a femme fatale da trama), encontra garotas de programas negras e menores de idade para um homem branco com fetiches sadomasoquistas. Sheba, aliás, merecia seu próprio romance, uma vez que é uma mulher negra empoderada que não depende de homem algum, principalmente para se defender — fato que a diferencia do tratamento e do desenvolvimento do arquétipo da “mulher branca e sensual em perigo” tão comum em histórias do gênero. Sua personagem nos é apresentada graças a uma descrição em forma de flashback. Outro detalhe que a separa histórica e visualmente de todas as outras femme fatales são seus “cabelos brancos cor de neve cortados curtos como de um homem e penteados para trás.” (p. 100)
Chester Himes poderia ter parado por aqui, mas, acertadamente, decidiu inserir mais caos na narrativa: a bala que matou Galen não foi disparada pela arma encontrada com Sonny — que era apenas de festim; Sissie e Peitinho de Moça são duas meninas negras de 16 anos que surgem na trama como peças-chave na narrativa, uma vez que ambas possuem ligações diretas com determinados personagens de bastante importância no caso. À essa altura no romance, o leitor provavelmente estará com os nervos à flor da pele, uma vez que o autor criou seus personagens com maestria, e o que percebemos é que todos estão ali desempenhando um papel importante, até mesmo personagens que possam, a princípio, parecer insignificantes. Em outras palavras, o autor transformou aqueles personagens — que são costumeiramente escritos por autores brancos de forma caricatural, desleixada e estereotipada — em seres multidimensionais, principalmente os jovens da gangue de mulçulmanos e a dupla de detetives, nos fazendo, inclusive, simpatizar e até torcer para eles independente de seus próprios atos de violência — que sabemos ser apenas um reflexo da sua existência, que por sua vez, é apenas o resultado de décadas de privação de seus direitos.
Como deve ter ficado claro, ainda que a identidade do assassino de Galen seja, de fato, revelada de modo surpreendente, o mais importante em Um jeito tranquilo de matar não é esta revelação, mas sim a ambientação da trama, o detalhismo descritivo de Chester Himes, além de dois aspectos muito mais interessantes: um estudo de personagem, mais precisamente na presença de Ed Caixão, que sofre de estresse pós-traumático devido a um evento no passado envolvendo ácido sulfúrico — fato que afeta diretamente e diariamente o seu trabalho; e a importância histórica de se ter autores negros escrevendo livros policiais, já que nos deparamos com vários comentários acerca da realidade racial e social da época em que o romance foi publicado. Existem várias passagens contendo brutalidade policial desenfreada — principalmente pelas mãos dos próprios detetives, que não pensam duas vezes antes de espancar outros personagens negros —, mas uma, em especial, e particularmente repleta de suspense, acontece quando vários policiais brancos invadem, sem saber, a casa dos “Mulçulmanos supermaneiros” em busca de Sonny — e o fato de que sabemos que o sujeito está escondido no local faz com que fiquemos genuinamente preocupados com a vida dos jovens.
Em última análise, Um jeito tranquilo de matar pode ser entendido em sua superfície apenas como um belo clássico da literatura Noir e Hardboiled, mas Chester Himes foi adiante, detalhando e condensando com exímio realismo — mesclado paradoxalmente — com uma pitada generosa de surrealismo, transformando a obra em um angustiante sonho febril. Já a costumeira violência policial sofrida por ele e por milhares de negros nos EUA desde a escravidão tem um papel importante através da personagem da senhora Bowee, uma ex-escravizada já centenária, e avó de um dos jovens delinquentes. É impossível não ler várias passagens contendo descrições gráficas de violência contra pessoas negras sem fazer relação com os milhares de casos de violência policial que aconteceram — e continuam a acontecer, infelizmente — naquele país e ao redor do mundo desde a publicação do romance no final dos anos 50.