Um padrão bem perceptível na escrita de Chester Himes é a sua predisposição para escrever sequências memoráveis de abertura. Se em Um jeito tranquilo de matar o autor abre narrativa com uma cena de ação com tiroteios, facadas e uma gangue de adolescentes negros árabes, em A louca matança (publicado no Brasil pela editora L&PM Pocket com tradução de Pedro Gonzaga), a trama se inicia de modo muito mais caótico, longo e elaborado.
Uma banda de jazz toca durante o velório de Big Joe, um dos senhores mais queridos do bairro. Paralelamente, em frente ao prédio, um assalto acaba de acontecer. Após ouvir a confusão, o reverendo Short, que estava no velório, se apoia na janela para poder acompanhar a perseguição e acaba caindo do terceiro andar. Milagrosamente sua queda é amortecida por uma enorme cesta de pães que estava na calçada da padaria do térreo. Milagre, acidente ou tentativa de homicídio?
Entretanto, quando a multidão se aglomera para ver o que aconteceu, uma revelação: dentro da cesta está Val Haines, morto com uma facada no coração. É aqui que Coveiro e Ed Caixão, os dois detetives protagonistas, chegam à cena para tentar descobrir quem matou o sujeito. Mas a tarefa, como era de se esperar, não será nada fácil, uma vez que praticamente todos os presentes no velório tinham motivos para matar Val Haines, entre eles sua própria irmã, Dulcy Perry, seu cunhado, Johnny Perry, Chink Charlie — que tinha uma queda por Dulcy —, e o próprio reverendo Short, que luta contra um vício. É impossível não aplaudir a criatividade do autor ao criar estas cenas que fisgam imediatamente a nossa atenção para o restante da história.
A partir deste momento, e de forma bastante cadenciada, passamos a acompanhar todas as etapas de uma típica investigação liderada por Coveiro e Ed Caixão, e quem já está acostumado com a literatura policial — principalmente com livros pulp e hardboiled das décadas de 30, 40 e 50 — sabe que estas fases são propositalmente confusas, longas, e repletas de personagens que surgem na narrativa no virar das páginas — um aspecto importante, pois assim o autor consegue inserir o leitor na história, quase como um terceiro detetive, o fazendo sentir na pele as dificuldades de quem precisa desvendar um mistério em um dos bairros mais populosos e violentos dos EUA.
A questão com A louca matança — terceiro romance da série iniciada com A maldição do dinheiro, em 1957 — é que estes aspectos ocupam muito mais tempo na narrativa do que o normal. Para contextualizar, Coveiro e Ed Caixão demoram quase 40 páginas para serem introduzidos no livro — que possui 222 páginas. Já as interrogações na sede da delegacia são descritas de forma lenta, durando cerca de 40 páginas. Só a partir da página 80 é que somos liberados dos interrogatórios e passamos a presenciar o funeral e o enterro de Big Joe, que se arrasta até a página 100. Ou seja: Chester Himes optou por uma longa caminhada até nos jogar no banco de trás do carro da dupla de investigadores, já que só por volta da página 120 é que iremos testemunhar de fato o trabalho de ambos, que assim como no romance anterior, continuam operando acima da lei.
Mas engana-se quem imaginar que estou listando os defeitos do romance. Minha teoria é a de que Himes acabou transformando — talvez até mesmo de forma inconsciente — uma trama relativamente comum para livros do gênero em um estilizado estudo sociocultural sobre o submundo do crime, sobre a moda e sobre a comunidade negra e gospel do Harlem no final da década de 50, já que no decorrer das páginas percebemos um detalhismo do autor ao descrever o clima, as roupas, os cabelos, os maneirismos e até mesmo o odor corporal de todos os personagens, principalmente quando a ação está acontecendo em igrejas, salões de festas ou encontros religiosos.
Na primeira metade da narrativa temos a oportunidade de ver as relações entre cada um dos personagens presentes na sequência de abertura — que como sabemos, são todos suspeitos da morte de Val Haines — e criar nossas próprias teorias acerca da identidade do culpado. E na segunda metade passamos a acompanhar de fato a investigação e resolução do mistério, além de testemunharmos com mais profundidade os métodos nada ortodoxos da dupla de detetives e as motivações de cada um dos personagens com relação a Val Haines.
Para finalizar, quero relembrar aqui uma famosa frase do diretor de cinema norte-americano Howard Hawks em que ele diz que para um filme ser bom ele só precisa de três cenas memoráveis e nenhuma cena ruim. Pois bem, é perceptível os ecos da frase de Hawks em A louca matança, já que, mesmo que o romance não seja continuamente eletrizante como Um jeito tranquilo de matar — que era basicamente um vulcão em erupção —, os fãs do trabalho do autor irão, eventualmente, se deparar não com três, mas pelo menos cinco sequências memoráveis de ação e/ou suspense durante esta história escaldante de amor, ciúmes e tragédia que precisa urgentemente ser descoberta pelo público brasileiro.