Algo que tende a se perder em meio à história são as personagens comuns. Aquelas, que por um motivo ou outro, sejam eles arbitrários ou movidos por poder, se tornam um borrão, quando não, invisíveis. Se isso acontece com nomes que julgamos importantes, como por exemplo, Ruth Guimarães ou Manuel Messias, o que dirá daqueles que sempre viveram na banalidade do cotidiano? Por vezes, pessoas incríveis, com grandes histórias ou talentos extraordinários, mas que ainda assim, seguiram como nomes conhecidos em suas ruas ou bairros, mas, infelizmente, não passaram disso. Todos nós conhecemos personagens assim, dentre aqueles que já se foram e os que ainda estão por aí – talvez só esperando um golpe de sorte para terem suas vidas viradas de cabeça para baixo. Contudo, nunca se sabe. E é partindo de um contexto relativamente parecido com esse que Saidiya Hartman escreve seu Vidas rebeldes, belos experimentos (Editora Fósforo, tradução Floresta), só que lançando o seu olhar para um grupo de pessoas bem particular e interessante: mulheres negras que em busca de liberdade, se rebelaram, e ao seu modo, foram figuras radicais e revolucionárias.
Assim como o subtítulo da obra já indica muito bem, o trabalho de Hartman, ao investigar os cinturões negros das cidades da Filadélfia e Nova York no final do século 19 e início do século 20, nos aproxima de histórias íntimas de mulheres e meninas que foram consideradas desordeiras e problemáticas, um verdadeiro perigo para a sociedade estadunidense daquele período apenas por buscarem uma vida plena, por mais simples que essa vida fosse. A questão é que só por existir, esses corpos já eram considerados uma ameaça. Não é de se surpreender, mas ainda assim é espantoso, o tanto que essas mulheres precisaram encarar. Viver em lugares que não te querem vivo é de uma violência tremenda.
Para escrever Vidas rebeldes, belos experimentos, Saidiya Hartman precisou “enfrentar o poder e a autoridade dos arquivos e os limites que eles estabelecem com relação àquilo que pode ser conhecido, à perspectiva de quem importa e a quem possui a gravidade e autoridade de agente histórico”. Além disso, a autora optou por um narrativa embebida na intimidade, pois, como ela própria diz na explanação do seu método – um ponto bastante positivo de sua obra, diga-se de passagem –, a voz que narra e a personagem estão em uma relação inseparável, buscando recriar toda a insurgência dos fatos nos aspectos formais do texto. No mais, “é uma narrativa escrita de lugar nenhum, do não lugar do gueto e do não lugar da utopia”, o que faz muito sentido. Sobretudo, quando pensamos nas heterotopias que dão as caras ao longo dos ensaios.
Portanto, não haveria maneira melhor de começar a contar essas histórias que não pela “terrível beleza do gueto”. Ao escrever sobre essa menina sem nome que vaga pelas ruas do Sétimo Distrito da Filadélfia e pelo Tenderloin de Nova York encantando e assustando a todos, Hartman também escreve sobre esse “lugar definido pelo tumulto, pelo coletivismo vulgar e pela anarquia”. Um espaço que chama de plantation estendida para a cidade. “Um ambiente urbano comum onde os pobres se reúnem, improvisam formas de vida, experimentam a liberdade e recusam a existência subalterna predefinida para eles.” Este é um cenário que se fará presente na maioria, se não em todas as histórias que dão vida ao livro. Um não lugar onde tudo pode acontecer, onde corpos utópicos se materializam, assim existindo, mesmo que contra a vontade alheia, mesmo diante da ojeriza e da recusa. O não lugar de onde o coro composto por todas as jovens não nomeadas da cidade procura dar vazão ao projeto estético de suas vidas. “No gueto, tudo está em falta, exceto a sensação. A experiência é abundante”.
Apesar disso, é o objeto de estudo de Hartman que faz de Vidas rebeldes, belos experimentos um trabalho pulsante: as mulheres que o véu da história tentou esconder. A existência dessas mulheres fora voraz, mesmo que porventura pareçam ter vivido em função do sofrimento. Inconformadas por natureza, não conseguiam e nem queriam se adequar e, com isso, suprimir quem eram. Mulheres cuja consciência de suas subjetividades parecia evidente. Elas não queriam abrir mão das suas complexidades, pois era isso que as faziam humanas, ainda que todo o resto gritasse o contrário. Com isso, entre o prazer e o desejo pela liberdade, havia muito espaço para a revolta e uma gama de sentimentos que movem perguntas como “é possível dar o que já foi tomado?” e “como é que viver havia se tornado um crime?”, dentre tantas outras. Não era fácil, mas elas se recusavam a não existir. Queriam ser quem eram, amar quem amavam sem ressalvas , não importando que isso fosse subversivo demais para os outros. Afinal, “ser uma mulher negra autorizava todo e qualquer ato brutal. Diante disso tudo, o que se poderia fazer senão recusar categorias?”
Todas as personagens que Hartman põe sob os holofotes do seu texto nos mostram – ou fazem lembrar – que a vida não é um percurso em linha reta, com um roteiro bem definido, tintim por tintim. Não. A vida é na verdade um palco onde a arte de improvisar se faz necessária. Até mesmo porque diversos atores constantemente entram em cena apenas a fim de bagunçar o espetáculo. Homens de bem, homens de leis, lacaios do poder, carrascos da moral e dos bons costumes que tudo estão dispostos em nome da ordem e contra todos os seres errantes – que nas histórias de Vidas rebeldes, belos experimentos têm cor e gênero bem marcados. Citar uma ou outra dessas mulheres, ainda que nem todas tenham seus nomes conhecidos, parece uma injustiça com todas as outras, mesmo que não mencionar nem uma delas diretamente cause esse sentimento ruim de que o que se faz aqui possa ser uma maneira de corroborar seus apagamentos. Faz-se aqui uma escolha, a de colocar todas elas junto ao coro que Hartman evoca sempre que necessário.
Indo além, há algo recorrente no texto que merece atenção. Não são poucas as vezes que Hartman parece ler a presença e a maneira de ser dessas mulheres como uma práxis anarquista. Mesmo sem terem lido Deus e o estado e A conquista do pão, elas pareciam se movimentar sob os signos da radicalidade, sem receio de acreditar ou até mesmo buscar a utopia. Existir por meio de amarras era tudo o que elas não queriam. Mais do que isso, todas odiavam a ideia de serem governadas. De novo, a liberdade total era o que almejavam. Mas as referências à anarquia não param por aí. Além dos clássicos, e também de Emma Goldman, Piotr Kropotkin e Lucy Parsons serem mencionados, o conceito de apoio mútuo aparece com frequência. Segundo Hartman, a solidariedade não era só comum a essas “mulheres desordeiras”, mas à toda comunidade negra, seja nas periferias, nas prisões a céu aberto, em todo lugar. A anarquia também se faz presente nas rebeliões e nas revoltas. Sem contar que “a herança estética da ‘tolice e conversa fiada’ não era nada mais que uma filosofia libertária que remontava às canções de escravos e às rodas de dança — os dons sonoros da luta e da fuga, da morte e da recusa, se transformaram em lamento, em gritos de alegria ou sons desafinados”. Mas não pense que a leitura que Hartman faz não é crítica. Para ela, “apenas uma interpretação equivocada dos principais textos anarquistas poderia imaginar um lugar para garotas de cor rebeldes. Não, Kropotkin nunca descreveu sociedades de ajuda mútua de mulheres negras, nem o coro, em seu livro Ajuda mútua, embora ele tenha imaginado a sociabilidade animal em sua rica diversidade e as formas de cooperação e mutualidade encontradas entre formigas, macacos e ruminantes. Domésticas impossíveis e obstinadas ainda não estavam no campo de visão dele nem de ninguém”. Contudo, ainda assim essa é uma chave de leitura bastante importante que a autora faz. E talvez o seu melhor reflexo esteja presente no curto, mas belíssimo ensaio – ou capítulo, se preferir – “Rebeldia: uma breve introdução ao possível”.
Vale ainda mencionar que Hartman traz para os seus ensaios nomes com os quais a história foi mais gentil. Temos no livro um retrato muito interessante e crítico de um jovem W.E.B. Du Bois, que recém formado doutor em Harvard, conduz uma pesquisa social no que a autora chama de “coração do gueto negro”. Vacilante, esse “tirano cordial”, que queria mostrar que nem todos os negros eram iguais, se revela um personagem complexo e por isso mesmo interessante. Também somos apresentados a uma Mary White Ovington cujo interesse pela comunidade negra não raro nos faz percebê-lo como fetiche. Hurbert Harrison também aparecem pelas páginas de Vidas rebeldes, belos experimentos com seus discursos sobre o amor livre, defendendo que a monogamia era anti-natural e uma imposição do Estado, e de certa forma defendendo – não que elas precisassem – todas as mulheres negras execradas pelas suas escolhas. O famigerado Henry Miller também dá as caras “insistindo que a liberdade sexual era tão necessária quanto a econômica, e que a força vulcânica de um orgasmo poderia com justiça ser comparada a uma revolta. Nada disso era novidade. Emma Goldman disse isso; Ma Rainey, Bessie Smith e Lucille Bogan disseram melhor ainda, mas quando o menino branco disse, o mundo ouviu, e a coisa se tornou uma filosofia, não entretenimento”. Por fim, até mesmo Billie Holiday e o episódio de sua prisão em uma casa de tolerância aos quatorze anos mereceram lembrança na obra.
Vidas rebeldes, belos experimentos é um trabalho que faz justiça às personagens que até então estavam perdidas em meio à história. Contudo, a rebeldia e a insurgência delas foram tantas que nem mesmo a tirania dos arquivos fora capaz de prendê-las. Ingovernáveis, ainda faziam barulho – mesmo que por entre os silêncios das fotografias –, chegando até alguém que simplesmente não conseguiu ignorá-las. Saidiya Hartman foi esse alguém. E ao desafiar o poder de tudo que se põe como dono da história, rasga o véu que cobre aquilo que não querem que seja conhecido. Ao contar a história dessas mulheres encrenqueiras que viram na desordem e na ruptura da normalidade um modo radical de existir, ela se junta ao coro que abriu o caminho em direção à liberdade.