Retratos do Brasil Negro é uma coleção da editora Selo Negro que reúne publicações sobre intelectuais, artistas e figuras da brasilidade negra. Uma das publicações é sobre Lélia Gonzalez, com biografia elaborada pela socióloga Flávia Rios e pelo antropólogo Alex Ratts, que reconstroem a trajetória da ativista recorrendo a documentações históricos, além da própria contribuição intelectual registrada pela autora em vida, para alicerçar a narrativa cronológica do livro.
Organizado em três partes principais, o livro elucida a cronologia da carreira e obra de Lélia Gonzalez e tem como pano de fundo a contextualização do cenário político e social do Brasil. Os autores não conhecerem a ativista pessoalmente, mas tiveram contato profundo com o material intelectual deixado por ela e por essa razão, desde o início da leitura é levantada a questão de como a seleção dos documentos exigiu cuidado para a composição do texto, de modo que há muitas citações de entrevistas ou de textos escritos por Lélia Gonzalez.
Diferente de muitas obras biográficas, esta não possui uma linguagem de difícil entendimento, pelo contrário. A linguagem acessível nos permite conhecer uma Lélia Gonzalez que se tornou uma figura pública, ativista, conhecida em território nacional e internacional após os 40 anos. Este livro materializa a fuga do curso da vida de uma mulher negra brasileira de baixa renda, vinda de Belo Horizonte – que na época era considerada a periferia do Brasil – para o Rio de Janeiro.
A primeira parte explora principalmente as origens da autora bem como seu lugar de nascimento, contexto familiar e o início do deslocamento geográfico, que culminou no movimento social em direção a círculos de associativismo, ativismo sindical feminista e negro do qual até então se mantinha desconhecido em sua vida.
A saída do “lugar do negro” por meio dos estudos era uma rara excessão para garotas negras e da classe popular da época, mas Lélia Gonzalez pôde dar continuidade aos estudos com a solidariedade de familiares e amigos, se retirando dos lugares sociais predestinados para a população negra no Brasil. Esse movimento transforma Lélia de Almeida em Lélia Gonzalez, figura pública, que por meio do seu processo de autoconhecimento deixa a “pretinha legal e lady” sair do foco, para dar espaço à intelectual ativista.
A segunda parte destaca principalmente as questões emocionais que possibilitaram a abertura da visão de mundo pessoal de Gonzalez para a autocompreensão cultural, muito influenciada por sua aproximação no Candomblé, que “foi um organizador psíquico pessoal no qual ela imergiu profundamente” e a ajudou no desenvolvimento de sua afirmação identitária.
Aa afirmação racial se corporificou na imagem e na linguagem de Lélia Gonzalez, na forma com que ela passou a se comunicar, levando em conta a composição étnica e racial, urbana e rural da população brasileira, com a introdução de gírias em seus escritos, o que conceituou como “pretuguês”, para assimilar conscientemente o entendimento do maior número de pessoas com o intuito de ultrapassar fronteiras estabelecidas pela classe.
O livro apresenta fragmentos sobre o período da ditadura militar brasileira, período no qual as atividades políticas de Gonzalez se fez mais presente, consolidando os desdobramentos de sua carreira enquanto figura pública na política. Sua carga intelectual não era vista por ela como suficiente para romper as estruturas de desigualdade e opressão, desta forma, buscou ter participação ativa em grupos de mulheres, como no Coletivo Nzinga, que instigou sua percepção a respeito do feminismo negro no Brasil, tema do qual se tornaria a principal referência. E também conta em detalhes a formação do Movimento Negro Unificado (MNU), do qual Gonzalez foi uma das principais fundadoras juntamente com Abdias do Nascimento e outros ativistas intelectuais da época.
E por fim, a terceira e última parte encaminha as cenas finais da jornada da ativista, contando detalhes sobre os últimos eventos pessoais que culminaram no adeus da mulher negra que deixou profundas marcas na construção político racial do Brasil, e que foi uma figura preciosa para aqueles que a conheceram durante todo seu tempo de vida. Conhecer o processo do “tornar-se Lélia” é uma verdadeira aula de como tornar ferramentas subestimadas – pela sociedade capitalista, racista e misógina – , veículos possíveis de transformação e edificação de um Brasil que pensa raça seriamente como agenda política.
Manter viva a história de Lélia Gonzalez e dos militantes que estiveram empenhados na luta junto com ela, desde o início dos primeiros eventos em que a pauta racial estava em discussão no Brasil, é uma necessidade para que as maiorias silenciadas possam verdadeiramente ter perspectivas de acessarem lugares com mais igualdade e dignidade. Além disso, a luta oriunda do movimento negro é indissociável da luta dos povos originários, por isso o não apagamento étnico deve ser um projeto político em movimento, para que lutas presentes possam ter a possibilidade de liberdade e justiça para existências futuras.