Drauzio Varella é médico e comunicador. Um dos trabalhos mais importantes que ele já fez foi na Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida popularmente como Carandiru, o maior presídio da América Latina, durante a década de 90. A partir desta experiência ele publicou Estação Carandiru, Carcereiros e Prisioneiras, sempre com um olhar atento e sensível ao sistema prisional como um dos maiores marcadores da desigualdade social (e racial também) do país. O que é um presídio, se não, uma extensão da favela?
Recentemente estive em um evento no SESC Santana, em memória aos 30 anos do massacre do Carandiru e o rapper Dexter estava lá. Dexter ficou preso durante um tempo no Carandiru e afirmou que é preciso que alguém olhe e questione o encarceramento em massa. Por morar perto do Carandiru e ter curiosidade sobre a memória do lugar (que hoje é o Parque da Juventude com duas ETECs, uma biblioteca e um circo-escola), comecei a ler Estação Carandiru e fiquei impressionada com a habilidade narrativa de Drauzio Varella. Sabemos que ele é um dos médicos mais reconhecidos do país, mas me encanta o olhar dele sobre o cotidiano. Ele tem um cuidado com a memória. Isso me parece importante, principalmente quando tratamos de assuntos sobre os quais a sociedade tenta insistentemente silenciar, como por exemplo, o encarceramento em massa e a importância das políticas públicas na área da saúde.
Em O exercício de incerteza, Drauzio conta suas memórias linearmente, começando pelas origens da família, a infância no Brás, a faculdade de medicina, a época em que foi professor de cursinho, sua trajetória como comunicador nas campanhas de saúde pública, a experiência nos presídios, a relação com a saúde, as relações afetivas, o processo de envelhecimento e por fim, um registro de seu ponto de vista sobre a pandemia. A incerteza é a sensação que atravessa todas as memórias e sempre aparece como um dos tópicos da poética do livro.
A obra começa com a memória “O terno que nunca usei” nela, Drauzio conta sobre o dia em que passou no vestibular, mas essa memória também é sobre a relação dele com o pai. O terno que ele nunca usou é sobre a incerteza, ele pede o terno do pai quando passa no vestibular de medicina mas não sabe se vai ganhar. Nessa memória, que também poderíamos chamar de crônica, aparecem alguns recursos poéticos que reverberam ao longo do livro, em algumas memórias mais, outras menos. Tem uma quebra de expectativa no final dessa memória e esse recurso estilístico se manifesta também na memória “Origem” em que ele conta a história da imigração de sua família e mais uma vez os traços de personalidade do pai.
As memórias de Drauzio registram também a memória do Brasil e os avanços da ciência e da medicina. Ele comenta fatos históricos como a ditadura, a criação do SUS, a explosão da bomba atômica, a ovelha Dolly, o surgimento da AIDS, da internet. Talvez a importância de olharmos para a memória seja pensar: Como nos relacionamos com o nosso tempo?
Em “pobreza, desnutrição, endemias”, temos um levantamento histórico e o quadro das principais enfermidades na década de 60, época em que a expectativa de vida no Brasil era muito baixa.O acesso à saúde era para poucos e se concentrava em algumas regiões do país. Não havia políticas públicas na época em que Drauzio estava decidindo sua especialidade. Ele queria fazer diferença em uma comunidade, contribuir com a população de baixa renda, mas a saúde básica ainda estava começando. As faculdades de medicina treinava os estudantes para atender as camadas sociais com maior poder aquisitivo. Trabalhar com a população que vivia na pobreza, fazia parte do treinamento mas não era a finalidade da medicina.
Ao longo das memórias de O exercício de incerteza percebemos que a medicina tem a ver também com política para que a medicina seja acessada por toda a população. Ele explica a criação do SUS, “a maior revolução da medicina”, o transplante de órgãos e hemodiálise do Brasil são os maiores programas gratuitos do mundo nessa área. Drauzio também denuncia o descaso do governo federal com o SUS e a saúde durante a pandemia. No final do livro, há um epílogo dedicado a este tema.
Além do compromisso com a memória que Drauzio demonstra ao narrar os acontecimentos de sua vida e de seu tempo, comprometido com dadoS estatísticos e históricos, me agrada também a habilidade de se comunicar com vários públicos diferentes. Na época da epidemia da AIDS, Drauzio começa a pesquisa o HIV e percebe que havia um grande desconhecimento sobre a transmissão do vírus. Ele cedeu algumas entrevistas à rádio e elas tiveram grande retorno e por isso, em 1989 foi convidado para desenvolver uma campanha sobre AIDS para circular em um canal de televisão de Santa Catarina e também em escolas e unidades de saúde. Ele queria mostrar onde o vírus se dissemina e um dos lugares que ele escolhe mostrar são os presídios. Esse momento que conecta a epidemia da AIDS, o início da trajetória de Drauzio Varella como comunicador e médico voluntário no presídio está registrado nas memórias “Na rádio”, “Na cadeia” e “O mundo do crime”.
Drauzio Varella entra pela primeira vez no Carandiru por causa dessa campanha e depois decide trabalhar lá como voluntário. Ele começa a desenvolver uma pesquisa com os detentos que estavam infectados O HIV era transmitido por droga injetável e esses detentos tinham visitas íntimas com mulheres. A ideia de Drauzio era mostrar a irresponsabilidade de permitir a entrada de mais de mil mulheres aos fins de semana para manter relações íntimas com seus parceiros infectados, sem nenhuma informação e acesso a preservativos. Existia uma invisibilidade às mulheres infectadas e Drauzio entende que isso acontecia porque além de ser mulheres pobres, mulheres pretas. Olhar para a população carcerária, permite que Drauzio finalmente possa contribuir com comunidades sem acesso. Tanto que ele é uma das vozes mais expressivas sobre a realidade dos presídios.
Ele também lança um olhar sensível para a condição das mulheres nas memórias “As enfermeiras”, “As mulheres” e “Coisa de mulher”. E o que eu gosto muito dessas três memórias é que ele apresenta dados. Se Drauzio Varella, médico reconhecido, afirma que as meninas se desenvolvem bem antes dos meninos, quem sou eu para questionar? Ele menciona o cuidado que as mulheres têm com a saúde e como o mundo é injusto conosco. É notável que a partir dessas memórias, O exercício de incerteza vai ganhando um tom ainda mais sensível porque Drauzio começa a olhar para a morte e para o envelhecimento e assim temos alguém no presente que observa o passado como uma experiência. E o tempo, os acontecimentos da vida, supõem a incerteza.
Por fim, nas memórias “A dor alheia”, “A convivência com a morte”, “A ciência e a arte”, “O envelhecimento do médico”, Drauzio Varella aprofunda a relação entre a vida e as palavras. Ele acredita que medicina se parece com a literatura. Os grandes desafios da medicina são de ordem humana. O que dizer diante de um paciente com uma doença que não tem cura? Com que entonação? Isso envolve escolha das palavras. Muitas vezes, usamos a palavra “calma”, mas lidamos com o medo. Para além da empatia e compromisso com a dor do outro e as questões sociais, Drauzio Varella tem um cuidado com a palavra e a narrativa.
O exercício de incerteza é um livro que acredito que todo mundo da área da saúde deveria ler, mas se não for dessa área, sem dúvidas encontrará em várias páginas não apenas informações importantes sobre a realidade do Brasil, como também um alento. Este livro é também a memória de um aprendizado sobre a vida, um aprendizado que só termina diante da única certeza da vida: a morte.