Bendita seja a filha criada por uma voz em sua cabeça (Companhia das Letras, tradução de Laura Assis) é um livro de poemas cheio de diferentes texturas. Nele Warsan Shire se apresenta como uma garota negra que busca, sonha e deseja no florescer de sua adolescência em meio ao desconcerto que fugir da guerra pode causar nos tecidos emocionais ainda em formação.
Neste livro de estreia a autora conta não só uma, mas várias histórias que costuram retalhos das vivências de si mesma e da vida que viu acontecer ao seu redor. Warsan Shire nasceu em Nairóbi, no Quênia, e cresceu em Londres; tece em palavras uma colcha com texturas diversas dores, entre elas ser obrigada a se desprender de seu lar e encontrar outro território que pudesse ser sua casa, evidenciando os conflitos e as questões identitárias que permeiam o processo de fuga e incertezas.
O livro é composto por quatro partes, na primeira parte “What doesn’t kill you” ou “O que não te mata” Warsan passeia por seu processo de travessia e para além de uma evasão territorial forçada, recorta seus próprios sentimentos em busca de si mesma, num novo lugar que retira sua humanidade e identidade. A autora coloca em foco como a memória é um recurso de pertencimento identitário que tem importância para os rótulos políticos. Como livro possui uma composição visual que mantém a identidade linguística da autora com o texto original em inglês e com as expressões somalis que são integralmente transpostas na tradução para o português, fica evidente como a língua é uma ferramenta de identidade.
Além da construção engenhosa e perspicaz, os poemas expõem a vulnerabilidade sexual que mulheres em processo de imigração são expostas sem que haja qualquer amparo. Para além de suas memórias, Warsan Shire narra sobre outras vidas, como uma tentativa de suscitar os nomes, os rostos e os sentimentos de pessoas refugiadas que são sistematicamente invisibilizadas e apagadas como um movimento contrário à sua dispersão territorial: o retorno e a manutenção da identidade social.
Na segunda parte, “This is not a love song”, a figura materna se faz presente em diversas passagens, com relatos sobre as condições nas quais a mãe da autora foi submetida antes da travessia, como violência doméstica, colocando às claras uma espécie de “fuga da fuga” em relação a libertação de sua mãe das violências diárias. São assuntos presentes nesta parte também a religiosidade e cultura muçulmana.
Na penúltima parte, “Are you there, god?” ou “Deus, você está ai?”, a autora revela seu íntimo antes da fuga, antes da guerra. Como funcionava a cabeça de uma garota que acabou de menstruar e está tentando entender a razão pelas quais devem ser estabelecidas novas etiquetas sociais de comportamento, em razão de uma falsa maturidade precoce explicita passagens em que evidentemente o corpo da mulher é alvo de caracterizações públicas, como se também fossem objetos públicos. Paralelamente se mostra uma menina aspirante de seus próprios desejos, convicta de como seu corpo deve ser acessado com cuidado como em “Bendita seja essa casa”, um dos meus poemas favoritos do livro.
E na última parte, “Testament” ou “Testamento”, Warsan dá vida a outras memórias presentes que coexistem ao seu redor, concretizando a imagens no imaginário do leitor. Os poemas presentes em Bendita seja a filha criada por uma voz em sua cabeça, me geram identificação em vários aspectos que não só o racial. A autora fala de garotas negras que muitas vezes estão imersas na pobreza e sofrem de uma série de outras questões, que são importantes para a integridade física e intelectual de garotas. Gosto muito do jeito que a autora compõe suas poesias e como cada texto foi aparentemente pensado para compor uma determinada parte da obra, encadeando um percurso fluido e delicioso de leitura.