Quando publicou O sol na cabeça (Companhia das Letras) em 2018, Geovani Martins chegou chegando. Não demorou nada para que os seus contos ganhassem as ruas. Do morro ao asfalto, da troca de ideias entre broders às escolas e universidades, o livro estava na boca de todo mundo. Enquanto para uns a novidade era toda a representação de um universo que pela acuracidade se mostrava um outro que não aquele sempre idealizado e romantizado, e portanto, novo, com uma vivacidade para muitos desconhecida, a outros a novidade se dava justamente pela possibilidade de se identificar nos mais diversos níveis com as histórias narradas pelo autor. Seja por meio da experiência própria, por causos contados por outras pessoas ou pelo reconhecimento de situações, dilemas e dramas, há uma familiaridade na obra de Geovani que até então, na literatura, era inédita para muita gente.
Contudo, não é só no enredo que o texto de Geovani se destaca. O seu trabalho de linguagem também é muito bom. Com diálogos precisos e uma condução rítmica ímpar, não é à toa que o enxergam como um jovem mestre da narrativa. Suas escolhas estéticas só corroboram essa percepção. E isso sem falar no domínio que ele tem da língua, algo que já vem pegando geral desde que o seu “Rolézin” apareceu com o pé na porta. Geovani consegue dar vida a um discurso que, mesmo com algumas particularidades, é a verdadeira cara do Rio de Janeiro, e que qualquer um na pista, seja nas favelas da cidade ou pelos municípios da Baixada Fluminense, reconhece de cara. E esse caráter oral, dono de um léxico muito próprio de quem vive na correria do dia a dia, que soa natural e nada forçado, talvez seja a maior qualidade da sua escrita. E se tudo isso já era perceptível na coletânea com a qual fez a sua estreia, Via Ápia (Companhia das Letras), seu primeiro romance, não deixa dúvidas: Geovani Martins sabe muito bem como se joga esse jogo que tem as palavras como objeto.
Tendo seu título pego emprestado de uma importante rua comercial da Rocinha, Via Ápia tem justamente essa famosa favela da Zona Sul carioca como cenário de sua história. E Geovani nos enfia por suas ruas e becos de tal maneira que em alguns momentos é como se nós mesmo vivêssemos naquela comunidade e lá estivéssemos presenciando tudo acontecer. Efeito ocasionado pela habilidade que o autor tem de nos pôr nas situações que narra tão bem. O que, inclusive, torna praticamente impossível não nos apegarmos aos personagens tão cativantes que cria. E assim, quando menos vemos, estamos completamente envolvidos com a trama.
Dividido em três partes por meio de capítulos curtos que se passam num período que vai do dia 27 de julho de 2011 ao dia 26 de outubro de 2013, Via Ápia é um romance que trata dos impactos causados pela implementação da Unidade de Polícia Pacificadora, a famigerada UPP, na favela da Rocinha. E acompanhamos os acontecimentos que circundam este evento a partir das experiências de cinco jovens que lá vivem, os irmãos Washington e Wesley, e o trio de amigos que dividem o mesmo teto, Douglas, Murilo e Biel. Suas vidas são intimamente atravessadas pela nova realidade com a qual precisam aprender a lidar enquanto, pouco a pouco, vão descobrindo que a favela como conheciam já não existe mais. E assim como a rotina do morro vai se transformando, a vida de cada um deles vai tendo suas reviravoltas pessoais que, não raro, são influenciadas direta ou indiretamente pelos novos ventos que lá chegaram.
As descobertas, as inseguranças, as pequenas e as grandes vitórias, as alegrias e as tristezas compartilhadas, tudo isso é afetado, quando não potencializado, pela presença militar no cotidiano do morro. As festas e furdunços que outrora eram intrínseco ao dia a dia desses jovens passam a ser um risco cada vez mais raro. O ir e vir deixa de ser um direito. E a consciência de que qualquer um a qualquer momento pode rodar caminha pelas sombras com todos eles. Ninguém quer ser cerceado, ter suas asas podadas. Mas menos ainda, ninguém quer virar estatística. O que resta é reaprender a tocar a vida, tentando sempre diminuir as chances de virar o motivo do choro de pessoas queridas. Mas como é que se faz isso? Sobretudo, de uma hora para a outra?
Mas mais do que narrar as vivências de uma juventude mergulhada em sonhos e incertezas, Geovani Martins também faz um panorama muito cirúrgico do que foi esse período que machucou para sempre a cidade do Rio de Janeiro. As marcas que esse projeto da Secretaria Estadual de Segurança deixou na Rocinha – assim como em outras favelas – foram muito além daquelas que as balas fizeram nas paredes. Nos parece impossível viver uma violência como essa sem que os traumas se tornem companheiros eternos. Mesmo que a caminhada acabe tomando outro rumo, os fantasmas de um passado tão presente sempre se farão perceber. Como esquecer os esculachos, a humilhação, as tantas vidas ceifadas de forma tão estúpida? Projeto de marketing para gringo e rico ver. Nada de pensar no morador. Pelo contrário: a vida que já não era fácil, se torna cada vez pior. Sem qualidade nenhuma. E saber que essa brutalidade teve chancela do Estado só faz da coisa mais podre ainda. É como já virou slogan: necropolítica na prática. Papo já batido, mas que não se pode, jamais, esquecer.
Via Ápia é um romance sagaz que ajuda a desnudar um período nefasto da história do Rio de Janeiro que deixou consequências que perduram até os dias de hoje. Mas também nos mostra que, apesar de toda agrura, é possível dar uma perdido na brutalidade e viver de modo em que a alegria e o prazer são quem mandam no rolé. Mas isso sem cair no conto de fadas da meritocracia, do “quem quer dá um jeito”. É tudo muito custoso, sempre fazendo fronteira com o perigo. Geovani Martins conta muito bem essa história, sem deixar de denunciar o racismo e a desigualdade social que tornam realidades como essa possíveis. Mas mesmo com todo o jogo contra, a intenção é a de sempre comemorar no final, tal qual toda Rocinha no dia em que o Flamengo fez da vida mais uma vez sinônimo de festa naquele clássico inesquecível em que marcou cinco de virada para cima do Santos, fazendo até vascaíno vibrar. É como o Geovani escreve: é a vida – sempre ela e nunca a morte – que faz esse chão tremer.