Vozes negras e o Southern Gothic: uma breve análise sobre a literatura gótica sulista norte-americana

“A homossexualidade é essencialmente gótica”. – Thomas Lawrence Long

Minha relação com a literatura policial, mais precisamente os gêneros Noir, Pulp e Hardboilled (que por motivos de praticidade irei me referir apenas como Noir no restante deste texto) teve início graças à minha paixão pelos filmes policiais norte-americanos das décadas de 30, 40 e 50 — os populares “filmes de Gângsters”. Após incontáveis horas diante da TV, ou debruçado em romances clássicos do gênero, algo me chamou a atenção: a brancocentricidade padronizada destas produções. Por isso, em 2022 organizei alguns pensamentos e escrevi um texto especulando o possível motivo da ausência de autores negros de literatura policial no Brasil — um gênero que apesar de ter sido criado por autores brancos, recebeu uma inegável injeção de adrenalina na forma de riqueza racial e cultural quando autores negros entraram na cena literária — alguns deles sendo Chester Himes (A maldição do dinheiro, 1957), Iceberg Slim (Trick Baby: The Biography of a Con Man, 1969), Walter Mosley (O diabo veste azul, 1990), Eleanor Taylor Bland (Dead Time, 1992), Barbara Neely (Blance em apuros, 1992) e mais recentemente, Karla F. C. Holloway (A death in Harlem, 2019)

Com a inserção destes nomes na literatura policial as bibliotecas, mansões e casas de campo europeias, com seus detetives bigodudos e blasés, foram gradativamente perdendo espaço nas livrarias, uma vez que os romances norte-americanos frutos da Grande Depressão, e ambientados em bares esfumaçados das ruas escuras do Harlem e do Brooklyn moldavam a cena literária da época. Por consequência, nomes como Mike Hammer, Sam Spade e Philip Marlowe, três dos detetives mais famosos da literatura Noir, começaram a dividir as prateleiras das livrarias com detetives negros que conquistavam cada vez mais público e crítica, entre eles Easy Rawlins, Jones Coveiro e Ed Caixão. Criou-se definitivamente um novo mundo literário para a população negra já saturada de histórias brancas de detetives.

A origem do Southern Gothic

Outro gênero que acompanho desde a adolescência é a literatura gótica, que assim como a literatura policial, foi um gênero criado e popularizado por escritoras e escritores brancos, entre eles Horace Walpole, que com seu seminal romance O castelo de Otranto, publicado em 1764, inventou o gênero; Ann Radcliffe, que 30 anos mais tarde viria a escrever um dos grandes romances do gênero: Os mistérios de Udolpho; e finalmente, o romance que me apresentou ao gênero: A abadia de Northanger, de Jane Austencuriosamente, uma sátira quase pejorativa publicada em 1817 em que a autora parodiava os romances góticos e seus clichês publicados até então. 

A literatura gótica clássica era pautada por uma série de tropos e características marcantes, como por exemplo: o melodrama, o terror — diretamente ligado ao sobrenatural —, maldições hereditárias, castelos assombrados, calabouços, longos corredores escuros, quadros que ganham vida, e, finalmente, donzelas em perigo. O leitor não aprofundado no gênero, e que só conhece romances contemporâneos, pode ficar desapontado com o estilo narrativo, com a linguagem ou até mesmo desmerecer o aspecto “sobrenatural” ao ter seu primeiro encontro com algum texto do gótico clássico, mas é preciso lembrar que o clichê foi, antes de tudo, algo inovador em algum momento da história da literatura. Por outro lado, o leitor atento às entrelinhas vai encontrar uma série de discussões acerca de tópicos pertinentes na sociedade atual, como por exemplo, feminismo, opressão feminina, sexualidade, identidade de gênero, homo e transexualidade. De modo sintomático, como não poderia deixar de ser, assim como aconteceu com a literatura Noir, desenvolveu-se uma mutação literária em que a literatura gótica saiu da Inglaterra e da Europa e ganhou nova roupagem nos EUA, sendo, então batizada de “Southern Gothic”.

Assim como ocorreu com a literatura policial e a literatura gótica clássica, o Southern Gothic, que pode ser traduzido como “gótico sulista”, foi popularizado por autores brancos, entre eles Edgar Allan Poe — considerado o pai do gênero, William Faulkner (O som e a fúria, de 1929), Flannery O’connor (Sangue sábio, de 1952), Carson McCullers (A balada do café triste, de 1951), Tennessee Williams (Uma rua chamada pecado, de 1947) e Truman Capote (principalmente em seu romance Outras vozes, outros quatros, de 1949). Esses autores e autoras, muitos deles homossexuais, bissexuais e lésbicas, subverteram o gênero ao dar destaque a personagens considerados grotescos e que muitas vezes eram inseridos no texto como metáforas para discutir assuntos considerados tabus, como por exemplo a homossexualidade, a transexualidade e a existência queer como um todo.

Histórias de monstros criados por um médico a partir de vários membros ganharam outras camadas quando lidos através de uma lente queer. Sim, estou falando de Victor Frankenstein e sua criação, que não só pode como deve ser lido como uma alegoria à identidade trans. Em outras palavras, se na literatura gótica clássica as pessoas com estas características eram monstros e vilões caricaturais, no Southern Gothic eles ganharam humanidade ao serem construídos com mais nuances, e por conseguinte, tornaram-se protagonistas multifacetados, pois o vilão deixou de ser uma pessoa e virou um conceito.

No Southern Gothic, assim como o Noir publicado nos EUA, iremos testemunhar de imediato uma ruptura com a ambientação vitoriana — castelos imponentes foram abandonados de forma sintomática, dando lugar à plantações assombradas pelos fantasmas da escravidão após a Guerra Civil norte-americana — onde a União (estados do norte), lutava pelo fim da escravidão, e os Confederados (estados do sul, que era formado por fazendeiros e donos destas plantações) tentavam a todo custo manter uma sociedade escravocrata. Consequentemente, o horror, os monstros e os fantasmas vitorianos da literatura gótica clássica foram substituídos pelo racismo, pela queerfobia, pela pobreza e pela repressão racial e/ou sexual enfrentada por pessoas negras que haviam sido abandonadas pela sociedade quando tornaram-se livres. 

Perceberam uma discrepância entre os assuntos abordados no gênero com relação aos autores que o popularizaram? Sim, eram pessoas brancas abordando questões relacionadas à existência negra. Ainda que muitos deles fossem conhecidos por seu envolvimento político e pelo seu ativismo a favor das casas negras, alguns eram pessoas brancas racistas com uma espécie de “lugar de fala às metades”, pois podiam abordar o dia a dia do sul norte-americano com verossimilhança, mas sem profundidade e realismo necessários para uma abordagem mais rica em relação à população negra. Felizmente, o surgimento de escritoras negras como Harriet Ann Jacobs, Zora Neale Hurston, Toni Morrison e Alice Walker inseriu uma plausividade racial que era ausente nas obras consagradas de escritores brancos — onde o negro, principalmente a mulher negra, deixava de ser o “outro” e passava a protagonizar grandes romances. Portanto, é primordial ter em mente que ainda que não seja escrito explicitamente, romances no estilo Southern Gothic, sejam eles recentes ou de 80 anos atrás, sempre terão comentários sociais, raciais, sexuais e políticos que em algum momento serão interceccionados com a religião sejam eles escritos por negros ou brancos.

Elementos intrínsecos ao Southern Gothic 

Independente da raça do autor, do romance, e de sua data de publicação, alguns elementos sempre estarão presentes em um bom romance do gênero, e dependendo do autor, esses elementos acabam se tornando tão importantes na trama quanto a própria trama em si.

Alguns deles são o sul norte-americano, onde os personagens brancos são decadentes e se entendem como pessoas respeitáveis, apesar de sua relação direta com a escravidão, onde a aristocracia branca tentava se agarrar às tradições obsoletas de um passado que os assombrava. Outro elemento presente nos romances é a espiritualidade africana, que geralmente é abordada através da relação dos personagens negros com a origem de seus antepassados que foram sequestrados para os EUA como escravizados. O sangue negro e heranças da escravidão também estarão presentes nos romances do gênero, já que seus fantasmas — literais e simbólicos — substituem o sobrenatural da literatura gótica clássica vitoriana. O terror do passado escravocrata norte-americano está presente em cada linha de cada romance do gênero, mesmo que não seja abordado de forma explícita. 

Por último, mas não menos importante, temos ele, o calor. Romances do gênero geralmente possuem narrativas que acontecem no Tennessee, no Mississippi, na Louisiana ou na Georgia, costumeiramente próximas à fazendas, pântanos, rios, ou em cidades cujo calor e a humidade são tão importantes quanto a questão racial, principalmente quando usados como uma metáfora sobre a tensão sexual e a paixão entre os personagens. Entretanto, na pior das hipóteses, e principalmente nos romances da primeira metade do século XX, o calor também é usado para reforçar o estereótipo da hiperssexulização do corpo negro masculino, uma característica que sofreu uma mudança gradual na segunda metade do século, quando as discussões acerca da sexualidade e identidade de gênero foram inseridas por escritores e escritoras gays, lésbicas ou bissexuais, que agora exploravam o homem negro como como homosexual, bissexual e sexualmente transgressor. 

Romances Southern Gothic de escritores negros contemporâneos e suas ausências no mercado editorial brasileiro

Assim como ocorreu com a literatura Noir, a literatura gótica clássica ignorava a presença de pessoas negras e suas heroínas e heróis possuíam a fisionomia pálida, branca e fantasmagórica — muitas vezes se assemelhando aos fantasmas que eles próprios tentavam escapar. Nos romances do gênero escritos por autores negros os personagens negros passaram a desempenhar papéis centrais e serem trabalhados com mais profundidade, tornando-se multidimensionais, o que enriquecia não apenas as obras, mas também a experiência do leitor, diante, agora de narrativas repletas de verossimilhança. 

Como citei no início do texto, ainda que nomes como Zora Neale Hurston (Seus olhos viam Deus, 1937), Alice Walker (A cor púrpura, 1982), Toni Morrison (Amada, 1987) e mais recentemente P. Djèlí Clark (Ring shout: grito de liberdade, 2020) tenham sido publicados no Brasil, a grande maioria dos autores negros do Southern Gothic segue desconhecida pelo público brasileiro, bem como, eu suspeito, o gênero como um todo, com exceção de alguns dos romances seminais de autores brancos citados anteriormente.

Se o terror tradicional, o horror e as fantasias escritas por pessoas negras são bastante populares no Brasil, o que falta para o mesmo ocorrer com o Southern Gothic? Com certeza não se trata de um gênero obsoleto, visto que vários nomes surgiram nos EUA nas últimas décadas com obras que reviveram, honraram e reinventaram o gênero, alcançando sucesso em outros países, mas que inexplicavelmente ainda não possuem traduções em português. O Brasil possui público para estes romances, principalmente por tratarem-se de obras escritas por autores negros. Imagino que o que falta é um esforço dos responsáveis pelo mercado editorial para publicar tais obras. Não restam dúvidas de que o retorno cultural e monetário seriam garantidos.

Romances do gênero escritos por pessoas negras

Seus olhos viam Deus, de Zora Neale Hurston (1937)
Nesta história a jovem negra Janie Crawford busca a sua própria identidade e liberdade ao embarcar em uma jornada de autodescoberta, atravessando casamentos opressivos, desafios sociais e conexões emocionais profundas. Zora Neale Hurston explora as complexidades da vida e do amor afrocentrado em meio ao cenário místico e grotesco do sul norte-americano.

A cor púrpura, de Alice Walker (1982)
Alice Walker nos transporta para a vida de Celie, uma mulher negra que escerve cartas para Deus e enfrenta as adversidades da segregação racial e do machismo no sul dos Estados Unidos enquanto descobre nuances de sua própria sexualidade quando conhece Shug Avery, amante de seu marido.

Linden Hills, de Gloria Naylor (1985)
Gloria Naylor desvenda o lado obscuro da busca pelo sonho americano através de um bairro aparentemente perfeito, chamado Linden Hills, onde os habitantes negros alcançaram o sucesso material, mas a um custo terrível.

Amada,
de Toni Morrison (1987)

Este romance envolvente de Toni Morrison ambientado no pós-Guerra Civil e na segregação racial, é protagonizado por Sethe, uma ex-escravizada que, assombrada por seu passado, é perseguida por um fantasma. O romance explora temas de trauma, maternidade, e a busca pela identidade em meio a uma sociedade que tenta apagar a história dos negros.

A neófita,
de Octavia Butler (2005)

Octavia Butler apresenta uma reviravolta única no gênero Southern Gothic com A neófita, uma história de uma jovem vampira negra chamada Shori. Ela luta para descobrir sua identidade e história enquanto enfrenta preconceitos e perigos em um mundo onde a coexistência entre humanos e vampiros é desafiadora.

Spook lights: southern gothic horror,
de Eden Royce (2015)

Spook lights é uma coletânea de contos do horror e do sobrenatural do Sul dos Estados Unidos. Eden Royce nos leva a um mundo onde lendas folclóricas se tornam realidade, assombrando personagens e lugares. Cada conto oferece uma visão única dos medos e mitos do Sul, explorando o lado mais sombrio da cultura e do imaginário sulista.

Sing, Unburied, Sing: A Novel,
de Jesmyn Ward (2017)

Jesmyn Ward constrói uma narrativa que segue uma família negra enquanto viaja pelo Sul contemporâneo dos Estados Unidos. O livro aborda temas de racismo, injustiça, e a herança de uma história dolorosa. 

Ring shout: grito de liberdade,
de P. Djèlí Clark (2020)

Neste eletrizante romance, P. Djèlí Clark apresenta uma narrativa que mistura história alternativa e folclore negro. Durante a era da Proibição, um grupo de mulheres negras caçadoras de demônios luta contra entidades malignas que ameaçam o Sul. 

When the Reckoning Comes: A Novel,
de LaTanya McQueen (2021)

Um romance assustador sobre Mira, uma mulher negra que retorna à sua cidade natal segregada para o casamento de Celine, sua amiga branca, que ocorrerá em uma plantação assombrada que foi transformada em um luxuoso resort. 

Conclusão

Sinto que é preciso avisar que quem escolher alguma das obras como futura leitura, precisa estar ciente do teor racial presente no Southern Gothic, uma vez que por tratar-se de um gênero do sul norte-americano, o racismo é abordado praticamente em todos os romances, não importa se a história foi escrita por uma pessoa negra ou branca. Logo, é preciso abordar o gênero tendo em mente as origens literárias da obra, a data da publicação e com isso, talvez, saber que termos obsoletos e politicamente incorretos estarão presentes no texto. Em outras palavras, é preciso abordar tais obras cientes que são documentos fieis da história de um país que como sabemos, foi construído com o sangue negro e indígena.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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