O cenário literário brasileiro traz em si um fato paradoxal e curioso: ao mesmo tempo em que ele é, contra toda e qualquer razão, carente de autoras e autores negros – sobretudo, se pensarmos que mais da metade da nossa população é composta justamente por essas pessoas –, ele também é um lugar em que há uma espécie de tradição de excelentes escritoras negras, tendo nomes como Ruth Guimarães, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, dentre outras, em seu alicerce. Claro, sabemos que isso tem muito mais a ver com exposição e o trabalho das editoras – salvo editoras como Malê, Mazza, Nandyalla e Pallas –, que, segundo a boca miúda, por muito tempo se ancoravam nas desculpas mais esfarrapadas para não abrir espaço para os autores não-brancos. Felizmente, o tempo foi agente aqui e as provaram erradas. Com isso, nomes como Eliana Alves Cruz, Paloma Franca Amorim e Jarid Arraes se tornaram não só realidade, mas parte do que se tem de melhor em nossa literatura. Seguindo os passos destas e daquelas que abriram os caminhos anteriormente, chega Calila das Mercês e seu Planta oração (Editora Nós), sua estreia na prosa.
Composto por dezesseis contos – mais uma intervenção que talvez possamos dizer poética que percorre todo o livro –, Planta oração é daquelas boas surpresas que vez ou outra nos esperam pela vida. A impressão que se tem é que das Mercês veio de mansinho, sem criar alarde, mas não nos deixando dúvidas de que ao se fazer notar, a impressão que causa é das grandes. Daquelas que marcam e nos acompanham dali por diante. E isso só é possível porque o seu texto é precioso. Tecido como vó tece aqueles casacos de lã para as netas e netos tão queridos. Sentimos todo o afeto que permeia tais linhas.
Ao longo do livro, somos seduzidos pelas histórias nas quais a familiaridade dos causos narrados vai nos envolvendo cada vez mais. As imagens aqui criadas pela autora evocam memórias e vivências que são facilmente reconhecíveis por qualquer pessoa que pôde e/ou pode experienciar uma vida em meio ao povo e em meio aos seus. E o melhor: das Mercês olha lá para trás, num gesto de respeito aos mais velhos, como se pedisse licença para escrever suas palavras, mas sem deixar que o novo, presente do qual vive, também se espalhe pelos seus contos. Um movimento exuzilhístico e espiralar no qual a ancestralidade e a contemporaneidade se confluem. E isso aparece em sutilezas, como em um cooktop, utensílio presente na casa da personagem central de um dos contos (“Coqueiro”), que contrasta com o fogão à lenha da casa de sua avó. Ambos utilizados para cozinhar as mesmas comidas. Um jeito de fazer “o novo ter a experiência do mais antigo”.
Os contos de Planta oração são plurais. Os temas que das Mercês trata são dos mais diversos. Indo de situações mais leves às mais pesadas. Enquanto em histórias como “Castanheira” e o seu refrão (“Deus me livre de fofoca. Mas era do basculante que Teresa via tudo.”) o voyeurismo tanto de Teresa quanto da narradora faz do desfecho do conto cômico, em “Limoeiro” e suas plurivozes, a tensão surge pela situação delicada que vive a pequena que protagoniza a narrativa, construída de tal modo que a faz não compreender a violência sofrida. Contudo, talvez a pérola maior deste livro esteja em “Jambeiro”, história dedicada a “Gê, agora uma arraia no céu”. Um conto delicado no qual a tônica está na sua fluidez. Com sutileza, das Mercês nos faz percorrer as inquietudes e descobertas de uma menina, menino que se encontra na mansidão de se saber única, único, se permitindo tremer sempre que se encontra empinando suas arraias em meio às nuvens carregadas e sedentas. Seja com seus olhos abertos ou fechados.
Como podemos perceber com os já citados, os títulos dos contos de Planta oração sempre são feitos a partir de árvores, arbustos e afins. Signos imprescindíveis e que, vira e mexe, estão presentes ao longo das histórias. Não à toa, há no livro um sumário-floresta, tão especial quanto os próprios contos e que só engrandece a obra. Além disso, também vale comentar algo simples, mas que se for proposital, é cheio de significado, que das Mercês (talvez) faz: todas as palavras que são de idiomas europeus, como o inglês e o francês, mesmo que bem assentadas em nosso dia a dia, são grafadas em itálico. Sabemos que isso é de praxe, comum em textos como os acadêmicos, e até mesmo uma prática editorial, dependendo sempre das decisões de cada editora, mas a literatura nos dá liberdade para que não seja assim, preto no branco. Mas no caso de Planta oração, esse detalhe nos salta aos olhos, pois, ao fazer esse tipo de escolha – caso a tenha feito mesmo –, a autora nos parece querer firmar posição, como se dissesse que não tem problemas com os estrangeirismos, mas que eles fiquem claros. Afinal, já falamos e subvertemos o português, língua que em outros contextos poderia muito bem não ter sido a nossa, então não tem por que aceitar mais essa imposição cultural e colonizadora de forma passiva. É como se das Mercês ecoasse Suassuna, tudo bem o seu okay, mas não se esqueça que aqui é a terra do oxente.
Como já dissemos, Planta oração é surpresa boa. Literatura de quem bebe na fonte do que temos de melhor, mas sem perder a originalidade. Reconhecemos ecos de quem veio antes, mas percebemos, sem esforço, a voz própria de sua autora. A escolha cuidadosa das palavras, a preocupação com o ritmo – que aqui é calmo, num tempo muito particular – e o apuro estético fazem de Planta oração um livro imagético e familiar. Calila das Mercês consegue nos pôr diante das cenas que cria na mesma medida que nos faz sentir próximos de suas personagens. Coisa que só uma boa contadora de histórias é capaz de fazer. Por isso ousamos dizer que talvez estejamos testemunhando o nascimento de uma autora da estatura de Ruth Guimarães e Conceição Evaristo. Que as espirais nos mostrem certos.