Paulo Bruno é um quadrinista brasileiro contemporâneo que vem fazendo um trabalho muito interessante e significativo. Formado em Artes Visuais pela Universidade Regional do Cariri, a URCA, o autor vem se dedicando a retratar o cotidiano e a pluralidade do povo brasileiro, sobretudo o periférico, não branco e que mesmo que porventura vivenciem os grandes centros e seus espaços de privilégios, tem suas raizes em outra realidade. Publicado pela Conrad por meio do selo Conrad Apresenta, 9mm de distância é uma história breve, mas muito poderosa.
Nesta história em quadrinhos, acompanhamos o desenrolar de um único dia na vida das personagens centrais, Beatriz e Gabriel. Ela, artista visual, ele, funcionário em uma distribuidora de bebidas. Dois jovens negros, sonhadores, e que batalham por uma vida melhor. Interessados um no outro, se aproximaram com a ótima desculpa de que ela ajudaria ele com o ingresso na faculdade. Papo foi, papo veio, finalmente marcaram de sair. E somos testemunha de toda a expectativa e ansiedade que circundam os dois à espera desse encontro.
Os desenhos de Paulo Bruno têm personalidade e uma assinatura muito própria. E essa identidade casa muito bem com o tom e o ritmo da história que o autor narra em 9mm de distância. Tanto no texto quanto no traço, Bruno consegue imprimir uma sensação de intimidade a nós, leitores. O que acreditamos ser mais acentuada quando a familiaridade entre narrativa e as experiências de quem a lê é mais estreita. E essa identificação, esse reconhecer as esquinas, os comércios, as realidades, é algo que torna essa breve HQ mais forte e incisiva. Há, inclusive, tentativas do autor em deixar alguns detalhes o mais verossímil possível, o que faz por meio de sutilezas que podem até passar batido no que diz a sua percepção, mas que os efeitos práticos se mantêm presentes. Cito dois exemplos: quando Beatriz conversa com sua amiga Eliana, em meio ao diálogo, há uma interrupção para que a protagonista comente a respeito de uma particularidade de sua cachorra, Lola, para logo depois voltar ao assunto. Quantos de nós já não vivenciamos isso? Em outro momento, ao falar com o patrão e um amigo do patrão, Gabriel diz que tem saído com Beatriz, mesmo que o primeiro encontro dos dois ainda esteja por acontecer. Percebemos que é algo inocente, mas que nas entrelinhas nos lembra das tantas vezes que caras, por mais legais que sejam, quiseram se sair por cima, elevando a sua moral. Movimentos simples como esses dois são muito bem usados por Paulo Bruno, e que só faz reforçar esse sentimento de familiaridade.
Atenção: a partir deste momento, comentaremos detalhes da narrativa. Caso não goste de spoilers, pule para o parágrafo final.
É realmente impressionante como Bruno consegue fazer a história de 9mm de distância crescer. Mesmo com o prenúncio, logo no início do quadrinho, o autor é capaz de nos envolver na calmaria que paira ao longo da obra. Seguimos ali, como se fizéssemos parte daquela vizinhança, só vendo o dia correr. E é justamente por isso que a virada no enredo nos bagunça por inteiro. Por mais pesado que seja o acontecimento, a mudança é muito abrupta, tal qual o fato narrado, e somos destroçados: Gabriel é assassinado pela violência do estado durante o seu encontro com Beatriz.
Paulo Bruno é muito perspicaz na forma como nos conduz pelos seus quadrinhos e balões. Ao não nos preparar para o seu clímax é que ele nos causa o efeito desejado. E ao fazê-lo, lança luz sobre um tema urgente, que não é novidade, e não pode, jamais ser normalizado. A violência do estado, não raro executada pelas mãos da polícia, é um dos maiores males da realidade brasileira. Sobretudo, a não branca. Um misto de despreparo e projeto. Não à toa, esse é um tema recorrente na literatura brasileira – vide Via Ápia (Companhia das Letras), do Geovani Martins, e O avesso da pele (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, só para citar alguns títulos. Mas o que de fato pesa, é que esse é um tema recorrente nos noticiários. Não são poucas às vezes em que nós nos recuperamos de um assassinato e já temos conhecimento de mais um. É luto engolindo luto. E que muitas vezes, as vítimas são crianças. E que na maioria das vezes, não dá em nada. Só sobra o peso para as famílias e amigos das vítimas carregarem, enquanto os responsáveis, agentes do estado, seguem suas vidas como se nada tivesse acontecido. E no fim, não importa o quanto imploremos, nada muda. Difícil não se perguntar: as vidas negras realmente importam?
9mm de distância, esse conto dolorido, é uma boa amostra de que a literatura em quadrinhos no Brasil está em boa forma e em boas mãos. Paulo Bruno tem tudo para ser um nome importante dessa arte, tais quais Marcelo D’Salete, Jeferson Costa e Lu Cafaggi, dentre tantos outros. Em 9mm de distância fica claro a sua habilidade tanto para narrar o prosaico quanto para narrar o brutal. Que não tarde para que possamos ler mais histórias suas. E de preferência, de mais fôlego. Sejam elas mais leves ou não.
Uma resposta
Muito grato pelas impressões, pessoal! Me emocionei com algumas palavras sobre meu trabalho. Um abraço!