O Gambito da Rainha e os estereótipos racistas

Este texto contém spoilers.

O Gambito da Rainha é uma minissérie de sete episódios da Netflix, roteirizada por Scott Frank e Allan Scott, que é baseada em um romance ficcional do escritor Walter Tevis. A série é ambientada nos anos 1960, portanto em um contexto de Guerra Fria. A protagonista é Beth Harmon, interpretada por Anya Taylor-Joy e a produção vai focar em sua história de vida enquanto garota orfã que pôde ter perspectivas de futuro graças a sua habilidade para o jogo de xadrez.

Beth Harmon aprendeu a jogar xadrez aos 9 anos, ensinada pelo zelador do orfanato para o qual foi encaminhada após perder a mãe em um acidente de carro. Na instituição, a garota se destacou por sua grande habilidade com a matemática, mas viciou-se em um calmante que davam para as crianças. Vício que perdurou mesmo depois de ser adotada.

Quero focar em como a série peca por representar de forma estereotipada a única mulher negra que tem em seu elenco: Jolene, interpretada por Moses Ingram. Sua primeira aparição é quando Beth Harmon chega no orfanato e a diretora está apresentando o espaço. Ouvimos alguém sendo desrespeitosa um dos instrutores falando algo de conotação sexual, essa primeira aparição pela voz já é chocante e faz com que a primeira impressão da personagem seja a de que é mal-educada.

Quando somos apresentadas a Jolene, damos de cara com uma menina negra que parece ser uma das mais velhas do orfanato. É ela quem ensina algumas estratégias para Harmon, como por exemplo não engolir o comprimido calmante na mesma hora e guardá-lo para noite. Ao longo dos anos em que Harmon e Jolene passam no orfanato, as duas vão se tornando melhores amigas, mas é apenas a menina negra que fuma escondido e é ela quem é acusada de roubar um dos livros da amiga quando esta é adotada e está arrumando suas malas. Beth Harmon foi interpretada por atrizes diferentes para marcar seu crescimento, Jolene é interpretada pela mesma atriz quando é criança e quando já é adulta, mais uma faceta do racismo nas produções audiovisuais, afinal, mulher negra sempre é retratada como mais velha, não tendo direito à infância e adolescência. Além dessas questões pontuais que fazem com que Jolene seja vista como a expressão de estereótipos racistas sobre pessoas negras, há também o estereótipo do Negro Mágico, muito presente em produções hollywoodianas.

Depois que Beth Harmon é adotada ela perde contato com as pessoas do orfanato, Jolene, que era sua melhor amiga e que aparece somente nos dois primeiros episódios, só volta a aparecer no último para atuar como a salvadora de Harmon. Ou seja, ela nunca tem uma ação de destaque por ela mesma, é sempre como coadjuvante da protagonista.

Jolene está na minissérie apenas para corresponder ao estereótipo do Negro Mágico: quando o negro não tem um desenvolvimento aprofundado e sua principal função e ajudar o protagonista branco. É exatamente o que acontece quando, depois de cinco episódios totalmente ausente, retorna em um momento em que a protagonista está no fundo do poço, se autodestruindo no vício em bebidas e calmantes, quase desistindo de sua carreira como enxadrista. Jolene é a pessoa que aparece para salvar a protagonista de si mesma, relembrando suas qualidades, seus privilégios e até emprestando uma grande quantia de dinheiro para viabilizar a viagem da protagonista para a Rússia, para jogar xadrez no torneio mundial.

Se a produção erra rudemente ao reproduzir tais estereótipos, acerta ao pelo menos construir a personagem Jolene com consciência racial. Ela sabe que é uma das mais velhas do orfanato e que tem poucas chances de ser adotada porque é uma criança negra. Quando retorna na trama, já mais velha, sua estética e discurso transparece sua aproximação com os ideais do partido dos Panteras Negras: o cabelo black power, as roupas, o fato de ter cursado faculdade e de trabalhar como assistente jurídica visando ser advogada. Jolene poderia ser melhor desenvolvida, mas pelo menos não é uma alienada.

Assista também ao meu vídeo sobre o mesmo assunto


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4 respostas

  1. Texto muito bom!! 👏🏼 Obrigada pela aula 🙂
    Percebi o estereótipo e a posição periférica de Jolene na minissérie, mas não conhecia o conceito de “Negro Mágico”.

    Nem sempre comento, mas admiro demais teus textos. Parabéns pelo trabalho!

    1. Oi, Sarah!
      Que bom que você teve essa percepção sobre a Jolene!
      Fico feliz que tenha contribuído para você aumentar seu repertório de conhecimento.
      Obrigada por estar, fico feliz demais em saber que gosta dos textos.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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